Já era tarde
da noite, ao longe os clarões sinalizavam a tempestade que se aproximava. Eu
tinha apenas uma hora de viagem, resolvi seguir em frente. Não seria a primeira
vez que dirigiria com tempo ruim. Eu estava ansioso por chegar em casa.
A chuva
chegou e foi se avolumando. O tráfego era intenso e os faróis ofuscavam a minha
visão no vidro molhado e oleoso. Pensei em parar, não havia lugar seguro,
continuei dirigindo. Uma árvore caída mostrava a força dos ventos e o perigo
que poderia estar me esperando na próxima curva.
De repente
um grande clarão tomou conta do espaço em minha frente, seguido de um som
estridente e assustador. Me obriguei a fechar os olhos e fiquei contente por
não ter encontrado nada à minha frente. Foi uma sensação boa, nos primeiros
segundos, pois a tempestade passou repentinamente, o vento cessou, apenas
galhos e folhas cobriam a pista. Nem água havia mais. Tudo estava muito
silencioso e a rodovia, malconservada, parecia mais nítida do que nunca para
uma noite encoberta pelas nuvens.
Tentei
sintonizar o rádio, havia um apagão nas emissoras locais, nem chiado eu
conseguia sintonizar. Depois, me dei conta que eu já havia andado por pelo
menos dois quilômetros e não encontrará nenhum veículo no sentido contrário.
Reduzi a velocidade, ninguém me alcançava também. Só poderia ter sido um
acidente, pensei.
A estrada
começou a ganhar contornos diferentes. Ao longe surgiram algumas luzes. Talvez
uma pequena cidade. Voltei a tentar a sintonia de alguma emissora no rádio. Ao
tocar o botão, as luzes do carro se apagaram. Em ato reflexo pisei no freio. O
carro invadiu a pista contrária, no exato momento em que surgia um outro carro
na outra mão de direção. As luzes do meu carro voltaram e o motorista conseguiu
perceber a tempo e evitar a colisão.
Joguei o
carro para o acostamento e fiquei paralisado por algum tempo. Minhas mãos
estavam fixas no volante. Olhei com mais atenção para elas, não pareciam minhas
mãos. Olhando com mais cuidado, o painel do carro também não era o mesmo.
Voltei meus olhos para o espelho retrovisor e não me reconheci no reflexo.
Apanhei o
documento de identidade na carteira sobre o console. A fotografia correspondia
à imagem no espelho, porém o nome registrado era o de um outro sujeito. Peguei
o telefone celular e busquei meus contatos. Sem nomes ou imagens conhecidas.
Naquele ponto da estrada não havia sinal de telefonia. Sem entender o que
acontecia, selecionei a opção “home” no GPS e segui pela estrada, guiado pelo
aparelho.
Apesar das
inscrições em uma língua diferente da minha, as placas na beira da estrada me
pareciam compreensíveis. O som do rádio voltou a funcionar. Um bipe sinalizou
uma nova mensagem de voz no sistema de áudio do carro, que estava conectado ao
telefone celular. Toquei a tela para ouvi-la: “Querido, você está atrasado!
Está tudo bem? As crianças já estão na casa de minha mãe. Preparei tudo para
que tenhamos uma noite só nossa”.
Seria uma
esposa? Quem sabe uma namorada? Eu havia feito a escolha de viver sozinho.
Nunca pensei em filhos. Por que eu aceitaria um relacionamento com filhos de
outros? A voz me parecia familiar. Repeti a mensagem por várias vezes tentando
identificar quem era. Parei o carro na entrada de uma via auxiliar. Curioso
busquei a imagem da pessoa associada aos contatos do telefone. Fiquei surpreso com
a constatação. A mulher na imagem era a de Maria, a garota dos meus sonhos na
adolescência. Alguns anos mais velha, porém com mesmo sorriso e brilho no
olhar. Eu nunca mais a havia visto, desde que decidi mudar de cidade para
estudar. Percebendo meus sentimentos, ela sempre evitara cruzar com o meu
olhar. Sempre tive a certeza de que o sentimento de afeto era unilateral.
Quando
estacionei o carro no endereço sinalizado pelo GPS, me vi em frente a uma casa
construída em estilo enxaimel, com um belo jardim em frente. Era bem diferente
da casa de que me lembrava, da minha casa, construída com muito vidro e linhas
modernas. Na caixa de correspondência o sobrenome do documento de identidade em
meu bolso. Talvez fosse a minha casa ou quem sabe de alguém da minha suposta família.
Estacionei o
carro e me dirigi a porta de entrada. Toquei o bolso e identifiquei o molho de
chaves. Uma delas abriu a porta com facilidade. Tudo estava decorado com móveis
antigos, com muitos quadros pendurados pela parede. Sobre a lareira um retrato
meu, com Maria ao meu lado e duas crianças.
Um tanto
perdido, identifiquei o lavabo, onde lavei as mãos. Espelhos contrapostos
multiplicaram a minha imagem e a do ambiente. Pensei em como poderia existir um
eu diferente, perdido nas dimensões. Depois, comecei a explorar o ambiente. A
mesa da sala de jantar estava posta para dois. Era possível sentir o bom aroma
que vinha da cozinha. Algo estava no forno e eu imaginava que fosse delicioso.
Voltei para
a sala no exato momento em que Maria descia a escada. Ela estava linda e pela
primeira vez pude experimentar a bela visão daquele sorriso lindo, daqueles
olhos brilhando, tudo para mim. Ela se aproximou, me abraçou e me deu um longo
beijo: “feliz aniversário de casamento, querido!”.
Fiquei atordoado.
Meio perdido pensei que eu não tinha um presente para ela. Na verdade, mal
podia lembrar a última vez em que eu havia comprado um presente para uma
garota. Antes que eu conseguisse pensar numa desculpa, ela me agradeceu pelo
presente: “as flores são lindas, meu amor”.
Tomei um
banho. Jantamos, dançamos, rimos um bocado. Foi a noite mais incrível que
experimentei em minha vida. Nunca me senti tão amado, nunca o sexo me fez tão
feliz. Descansamos um pouco. Cochilei, ela também.
Quando
acordei, ainda na madrugada, Maria ainda dormia, com uma bela e doce expressão
de sorriso no rosto. Ajeitei o leve lençol que a cobria e levantei, para
explorar um pouco da casa. Eu precisava entender o que acontecia.
Na sala de
vídeo, abri o armário e encontrei alguns álbuns de fotografias. Vi e revi todas
as imagens. Não era só a minha vida que havia tomado um outro rumo, meus pais
eram outros, o mundo era completamente diferente. Liguei a televisão e comecei
a navegar pela Internet, buscando canais de história. Constatei que a minha
história foi influenciada por fatos que aconteceram ainda no século XVI, ou
quem sabe antes, há milênios. Não saberia como precisar.
Eu acessava
sites e mais sites, freneticamente, até que me deparei com um programa onde um
físico explicava a teoria dos multiversos ou universos paralelos. Parecia
inacreditável, mas na visão dele, em cada momento que tomamos uma decisão e se
abrem caminhos alternativos, uma parte de nós ocupa espaço em universos
diferentes e a combinação de ações e decisões nossas e de terceiros, constroem
tais universos. Acredito que não haja um computador ou sistema capaz de
calcular quantas seriam essas possibilidades de combinações de vidas. Voltou-me à mente as imagens multiplicadas no espelho do lavabo.
Fui
surpreendido com as mãos suaves de Maria em meus ombros. Suas mãos se
movimentavam sobe o meu corpo e o desejo tomou conta de nossos sentidos.
Retomamos a experiência do quarto ali na sala mesmo.
Começou a
chover e a água que caia sobre o telhado tornava o momento ainda mais
interessante, intenso. Depois de experimentar mais um momento de êxtase,
deite-me ao seu lado no tapete, tentando recuperar um pouco do meu fôlego,
enquanto ela, deitada sobre mim, olhava fixamente em meus olhos. Eu a beijava e
a chuva se acentuava.
Uma
tempestade de raios se iniciou e depois de uma descarga elétrica houve um
apagão. Ela me pediu que olhasse para ela e as luzes intermitentes dos
relâmpagos iluminavam o seu rosto que conserva o sorriso e o olhar de desejo.
Ela tocou os meus lábios com os dedos e disse o quanto me amava.
Não tive
tempo para falar do sentimento, das minhas sensações naquele momento. Um clarão
muito forte e um estrondo quase que imediato invadiu o ambiente. Fechei os
olhos por alguns instantes. Quando os abri, meu carro havia invadido a pista
contrária. Para evitar a batida, pisei bruscamente nos freios e meu carro rodou
na pista. Voltei, para a minha pista, respirei por um instante e dei nova
partida. Procurei o acostamento e, por sorte, encontrei um recuo, num ponto de
ônibus.
Meu coração
disparou. Desliguei o limpador do para-brisa e deixei a chuva escorrer enquanto
eu me recuperava. Apanhei o telefone, eu precisava conversar com alguém, contar
o que me acontecera. Porém, eu não tinha com quem falar. A tristeza começou a
tomar conta de mim, por não saber como voltar para aquele universo, que por um
breve espaço de tempo, me fez tão feliz.
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