Quando
o marido morreu inesperadamente de ataque cardíaco, Maria Leonor entrou
imediatamente em pânico. Não sabia literalmente o que fazer, logo agora que iam
iniciar uma nova etapa de vida. Sim, ao fim de tantos anos de labuta, a mais
nova das três filhas saíra finalmente de casa, aos 26 anos, e iriam começar a
gozar os seus anos dourados com um cruzeiro à volta do mundo, um sonho antigo e
sempre adiado por razões familiares, mesmo depois da reforma dele.
Cancelou,
claro, ou antes, as filhas e genros, vindos de fora, trataram de tudo o que era
necessário, incluindo o funeral, ao verem que a mãe estava um verdadeiro caos.
Apaparicaram-na o mais que puderam, tentaram resolver tudo o que podiam em
termos burocráticos e financeiros, mas acabaram por ter de voltar às suas
respetivas vidas com o usual comentário vago de “não te esqueças de nos
visitares”.
E
Maria Leonor viu-se só, totalmente só, pela primeira vez na vida. Não o quisera
dizer às filhas por receio da sua reação, mas fora esse o verdadeiro motivo de todo
o seu pânico e desânimo. É que por muito que tentasse, não se conseguia
recordar de nenhuma outra ocasião da sua já longa vida em que não estivesse
rodeada de pessoas. De muitas pessoas, até.
Apesar
de ser filha única, a sua casa de infância estivera sempre cheia de gente e de
crianças da sua idade. Os pais tinham uma vida social intensa e faziam questão
de conviver com vizinhos, colegas de trabalho, pessoas que conheciam aqui e
ali, fazendo os possíveis por incluírem sempre uma boa dose de pais de crianças
com a idade da filha, nem que não fossem muito do seu agrado.
Por
isso, entre estes filhos de amigos, colegas de escola e primos, podia-se dizer
que só estava só quando dormia... e nem sempre, as festas de pijama eram
habituais, quase sempre lá em casa, e muito concorridas.
E
a mãe incutira-lhe desde muito nova a ideia de que não havia nada pior do que
uma pessoa estar sozinha. Não recordava que idade teria quando lho começou a
dizer, mas ainda se lembrava nitidamente de um dia, na pré-primária, ter reparado
numa colega muito pouco social, que preferia desfolhar livros a brincar ou
conviver com outras crianças, e da pena imensa que sentira por aquela
criaturinha tão só, apesar de ela parecer tudo menos infeliz.
Já
um pouco mais velha, apercebeu-se de que também o pai acreditava que a maior
tragédia do mundo era estar só, daí a intensíssima vida social que se esforçava
por ter. Era, aliás, um traço de família, ou antes de ambas as famílias. Dizem
que a natureza odeia o vácuo, pois bem, isso nada era comparado com o ódio
profundo que todos eles tinham à solidão. Como a tia Mira, que casara com
alguém totalmente desinteressante e de quem nem sequer gostava porque “era bem melhor
do que ficar sozinha”.
E
Maria Leonor entrara nessa onda, sem mesmo a questionar. Na Universidade,
apesar de poder ter um quarto individual, optara por partilhar uma casa com
vários colegas, apesar de alguns não serem nada do seu agrado. E as férias eram
passadas num autêntico corrupio de festas, saídas e convívios de todo o tipo,
bons ou maus, desde que envolvessem muita gente.
Mais
ainda, quando se formara os pais tinham querido oferecer-lhe uma viagem mundo
fora, como muitos jovens começavam a fazer, antes de começar a trabalhar. Mas
acabara por recusar porque, apesar de ter uma amiga, ou antes, uma conhecida,
interessada em passar umas semanas na Austrália, o seu ponto de partida, depois
estaria por própria conta, sem a menor garantia de conseguir alguém com quem
continuar a viagem.
Casou
pouco depois de ter começado a trabalhar, com o amigo de um primo que conhecera
numa das muitas festas da família. O António não padecia da mesma fobia à
solidão, mas, como passava o dia a trabalhar isolado num gabinete individual,
sabia-lhe bem conviver fora do horário laboral. Depois vieram as filhas, os
malabarismos entre trabalho, casa e vida social, enfim, uma vida muito
preenchida de atividades e pessoas.
Mesmo
os últimos anos “a dois” tinham sido muito bem planeados por Maria Leonor para
lhe proporcionarem o máximo convívio possível. Primeiro, o tal cruzeiro, onde,
entre mil e tal passageiros ali fechados haveria certamente muitas
oportunidades de criar amizades... pelo menos temporárias. E depois já tinham
lugar marcado numa espécie de condomínio fechado só para gente da sua idade
onde haveria, dia e noite, distrações e atividades de todo o tipo.
Não
tinha era contado com a morte abrupta do António, que a deixara à deriva. A
ideia do cruzeiro metia-lha agora mais medo do que antecipação. Sim, sempre
fora muito dada, mas era inevitável passar alguns momentos isolada, pelo menos
nos primeiros dias. Pior ainda, ficara com a ideia de que os passageiros eram
todos, ou quase todos, casais e quem quereria dar-se com uma viúva recente?
Ela, pelo menos, nunca o fizeram pondo prontamente de parte qualquer “amiga”
que entretanto enviuvasse ou se divorciasse. E todas as suas conhecidas faziam
exatamente o mesmo.
A
nova casa também não era uma opção, a vaga que iriam ocupar seria só daí a ano
e meio uma vez que o projeto ainda estava na fase inicial de alargamento. E o que
fazer durante essa longa espera?
Ainda
pensou visitar as filhas, uma a uma, mas, como todas trabalhavam fora de casa e
nem sequer havia netos, em que ocuparia os dias, sobretudo em países
estrangeiros de que não dominava a língua?
Não,
tinha de se resignar à ideia de que se tornara a criatura patética de que a mãe
sempre a avisara, alguém só no mundo.
E
as primeiras semanas foram realmente atrozes. A ideia de sair, de comer fora,
causavam-lhe pânico e vergonha. Sim, não queria ser a cliente sozinha que se
relega para uma mesa secundária e que é olhada de soslaio por todos. Nem uma
ida às compras a tentava, sempre o fizera com o marido ou amigas de ocasião –
mas estas nunca o tinham sido verdadeiramente e, com as novas atividades em
vista, deixara de se esforçar por manter o contacto, largando-as, até, uma a
uma.
Acabou
por depender da Internet para todas as suas necessidades e passava os dias na
cama ou especada em frente a uma televisão a que nem prestava atenção, mas que
mantinha sempre ligada porque “sempre era uma companhia”. Ou a ilusão de uma.
Mas
o que é demais enjoa, como se costuma dizer. E ao fim de umas semanas de
lamúrias e de autocompaixão, Maria Leonor começou a sentir-se irrequieta
fechada entre aquelas quatro paredes. E numa bela tarde ensolarada e quente,
decidiu ir dar uma voltinha.
Da
janela do seu quarto avistava-se o que parecia ser um parque, mas que nunca
visitara durante os muitos anos que ali vivera, nem mesmo quando as filhas eram
pequenas, embora visse dirigirem-se para lá inúmeras mães – ou avós – com
crianças em carrinhos ou pela mão e, de manhã, grupos de crianças que supunha
serem de alguma escolinha da zona.
O
verde do arvoredo parecia bem apetecível, por isso equipou-se com roupa
desportiva para parecer que estava ali apenas para se exercitar e não por ter
companhia. Mesmo assim ainda hesitou já junto à porta, voltou para a sala
várias vezes, mas acabou por se decidir. Se não gostasse, podia sempre voltar
para trás. E era altamente improvável que encontrasse alguém conhecido que a
visse ali, “triste e só”.
Passou
os largos portões e, com grande espanto seu, viu pela frente um laguito até
bastante grande, com um percurso a toda a volta e outros caminhos que
penetravam no arvoredo que avistara. Era bem maior do que imaginara, atendendo
a que aquela era uma zona urbana já bem antiga, sem um único terreno vago.
Inicialmente,
manteve um passo apressado de quem anda a treinar para uma corrida, mas havia demasiadas
coisas para ver, incluindo inúmeros patos na água. Acabou, pois, por reduzir
muito a velocidade e até, sem saber como, viu-se sentada num dos muitos bancos
existentes a observar o que a rodeava.
O
alarme do telemóvel alertando-a para a medicação que lhe tinham receitado
apanhou-a de surpresa, não fazia ideia de que já era tão tarde, as horas tinham
passado sem que desse conta disso, ao contrário do que acontecia desde a morte
do António. Dirigiu-se, pois, para casa, prometendo a si mesma voltar uma outra
tarde.
E
assim fez. Acabou, até, por se tornar um hábito diário, ou de manhã ou à tarde
lá ia ela para esta sua nova “descoberta”. Curiosamente, atendendo aos seus
hábitos de uma vida inteira, preferia até o período logo após ao almoço em que
o espaço estava mais vazio de gente.
Um
belo dia surpreendeu-se, até, a ficar para o almoço no pequeno café que
descobrira num recanto do parque. Era a única cliente sozinha, mas isso não a
impediu de apreciar a refeição e, sobretudo, aquele belo ambiente.
Pouco
a pouco, Maria Leonor foi mudando de hábitos, sem sequer dar por isso. Umas
compras agora, uma ida a um restaurante que lhe chamara a atenção ao passar,
até uma matiné, coisa que nunca estivera nos seus hábitos.
Sentia
a falta de companhia, claro, mas não o desespero de precisar dela a todo o
custo por não conseguir estar só. Descobriu, espantada, que até gostava da sua
própria companhia.
E
quando a empresa turística com quem marcara o cruzeiro à volta do mundo a
contactou para saber se pretendia um lugar no próximo, daí a umas semanas,
decidiu aceitar fazê-lo só que, desta vez, mais a pensar nos belos sítios que
iria ver e não tanto em quem conheceria a bordo ou, até, se encontraria com
quem conviver...
Quanto
ao condomínio para onde tinha planeado mudar-se, sobretudo pelas suas muitas
distrações e equipamentos, pois bem, decidiu vender o andar ainda por concluir
e ficar onde estava, usando o dinheiro assim poupado para se mimar futuramente
com novas viagens ou outros pequenos prazeres.
Pois,
a mãe, ou antes, os pais, estavam
completamente errados. Estar só e sofrer de solidão não são mesmo nada a mesma
coisa!
Luísa Lopes
Foto de Atharva Tulsi na Unsplash
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