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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Nunca é tarde


 

Quando o marido morreu inesperadamente de ataque cardíaco, Maria Leonor entrou imediatamente em pânico. Não sabia literalmente o que fazer, logo agora que iam iniciar uma nova etapa de vida. Sim, ao fim de tantos anos de labuta, a mais nova das três filhas saíra finalmente de casa, aos 26 anos, e iriam começar a gozar os seus anos dourados com um cruzeiro à volta do mundo, um sonho antigo e sempre adiado por razões familiares, mesmo depois da reforma dele.

Cancelou, claro, ou antes, as filhas e genros, vindos de fora, trataram de tudo o que era necessário, incluindo o funeral, ao verem que a mãe estava um verdadeiro caos. Apaparicaram-na o mais que puderam, tentaram resolver tudo o que podiam em termos burocráticos e financeiros, mas acabaram por ter de voltar às suas respetivas vidas com o usual comentário vago de “não te esqueças de nos visitares”.

E Maria Leonor viu-se só, totalmente só, pela primeira vez na vida. Não o quisera dizer às filhas por receio da sua reação, mas fora esse o verdadeiro motivo de todo o seu pânico e desânimo. É que por muito que tentasse, não se conseguia recordar de nenhuma outra ocasião da sua já longa vida em que não estivesse rodeada de pessoas. De muitas pessoas, até.

Apesar de ser filha única, a sua casa de infância estivera sempre cheia de gente e de crianças da sua idade. Os pais tinham uma vida social intensa e faziam questão de conviver com vizinhos, colegas de trabalho, pessoas que conheciam aqui e ali, fazendo os possíveis por incluírem sempre uma boa dose de pais de crianças com a idade da filha, nem que não fossem muito do seu agrado.

Por isso, entre estes filhos de amigos, colegas de escola e primos, podia-se dizer que só estava só quando dormia... e nem sempre, as festas de pijama eram habituais, quase sempre lá em casa, e muito concorridas.

E a mãe incutira-lhe desde muito nova a ideia de que não havia nada pior do que uma pessoa estar sozinha. Não recordava que idade teria quando lho começou a dizer, mas ainda se lembrava nitidamente de um dia, na pré-primária, ter reparado numa colega muito pouco social, que preferia desfolhar livros a brincar ou conviver com outras crianças, e da pena imensa que sentira por aquela criaturinha tão só, apesar de ela parecer tudo menos infeliz.

Já um pouco mais velha, apercebeu-se de que também o pai acreditava que a maior tragédia do mundo era estar só, daí a intensíssima vida social que se esforçava por ter. Era, aliás, um traço de família, ou antes de ambas as famílias. Dizem que a natureza odeia o vácuo, pois bem, isso nada era comparado com o ódio profundo que todos eles tinham à solidão. Como a tia Mira, que casara com alguém totalmente desinteressante e de quem nem sequer gostava porque “era bem melhor do que ficar sozinha”.

E Maria Leonor entrara nessa onda, sem mesmo a questionar. Na Universidade, apesar de poder ter um quarto individual, optara por partilhar uma casa com vários colegas, apesar de alguns não serem nada do seu agrado. E as férias eram passadas num autêntico corrupio de festas, saídas e convívios de todo o tipo, bons ou maus, desde que envolvessem muita gente.

Mais ainda, quando se formara os pais tinham querido oferecer-lhe uma viagem mundo fora, como muitos jovens começavam a fazer, antes de começar a trabalhar. Mas acabara por recusar porque, apesar de ter uma amiga, ou antes, uma conhecida, interessada em passar umas semanas na Austrália, o seu ponto de partida, depois estaria por própria conta, sem a menor garantia de conseguir alguém com quem continuar a viagem.

Casou pouco depois de ter começado a trabalhar, com o amigo de um primo que conhecera numa das muitas festas da família. O António não padecia da mesma fobia à solidão, mas, como passava o dia a trabalhar isolado num gabinete individual, sabia-lhe bem conviver fora do horário laboral. Depois vieram as filhas, os malabarismos entre trabalho, casa e vida social, enfim, uma vida muito preenchida de atividades e pessoas.

Mesmo os últimos anos “a dois” tinham sido muito bem planeados por Maria Leonor para lhe proporcionarem o máximo convívio possível. Primeiro, o tal cruzeiro, onde, entre mil e tal passageiros ali fechados haveria certamente muitas oportunidades de criar amizades... pelo menos temporárias. E depois já tinham lugar marcado numa espécie de condomínio fechado só para gente da sua idade onde haveria, dia e noite, distrações e atividades de todo o tipo.

Não tinha era contado com a morte abrupta do António, que a deixara à deriva. A ideia do cruzeiro metia-lha agora mais medo do que antecipação. Sim, sempre fora muito dada, mas era inevitável passar alguns momentos isolada, pelo menos nos primeiros dias. Pior ainda, ficara com a ideia de que os passageiros eram todos, ou quase todos, casais e quem quereria dar-se com uma viúva recente? Ela, pelo menos, nunca o fizeram pondo prontamente de parte qualquer “amiga” que entretanto enviuvasse ou se divorciasse. E todas as suas conhecidas faziam exatamente o mesmo.

A nova casa também não era uma opção, a vaga que iriam ocupar seria só daí a ano e meio uma vez que o projeto ainda estava na fase inicial de alargamento. E o que fazer durante essa longa espera?

Ainda pensou visitar as filhas, uma a uma, mas, como todas trabalhavam fora de casa e nem sequer havia netos, em que ocuparia os dias, sobretudo em países estrangeiros de que não dominava a língua?

Não, tinha de se resignar à ideia de que se tornara a criatura patética de que a mãe sempre a avisara, alguém só no mundo.

E as primeiras semanas foram realmente atrozes. A ideia de sair, de comer fora, causavam-lhe pânico e vergonha. Sim, não queria ser a cliente sozinha que se relega para uma mesa secundária e que é olhada de soslaio por todos. Nem uma ida às compras a tentava, sempre o fizera com o marido ou amigas de ocasião – mas estas nunca o tinham sido verdadeiramente e, com as novas atividades em vista, deixara de se esforçar por manter o contacto, largando-as, até, uma a uma.

Acabou por depender da Internet para todas as suas necessidades e passava os dias na cama ou especada em frente a uma televisão a que nem prestava atenção, mas que mantinha sempre ligada porque “sempre era uma companhia”. Ou a ilusão de uma.

Mas o que é demais enjoa, como se costuma dizer. E ao fim de umas semanas de lamúrias e de autocompaixão, Maria Leonor começou a sentir-se irrequieta fechada entre aquelas quatro paredes. E numa bela tarde ensolarada e quente, decidiu ir dar uma voltinha.

Da janela do seu quarto avistava-se o que parecia ser um parque, mas que nunca visitara durante os muitos anos que ali vivera, nem mesmo quando as filhas eram pequenas, embora visse dirigirem-se para lá inúmeras mães – ou avós – com crianças em carrinhos ou pela mão e, de manhã, grupos de crianças que supunha serem de alguma escolinha da zona.

O verde do arvoredo parecia bem apetecível, por isso equipou-se com roupa desportiva para parecer que estava ali apenas para se exercitar e não por ter companhia. Mesmo assim ainda hesitou já junto à porta, voltou para a sala várias vezes, mas acabou por se decidir. Se não gostasse, podia sempre voltar para trás. E era altamente improvável que encontrasse alguém conhecido que a visse ali, “triste e só”.

Passou os largos portões e, com grande espanto seu, viu pela frente um laguito até bastante grande, com um percurso a toda a volta e outros caminhos que penetravam no arvoredo que avistara. Era bem maior do que imaginara, atendendo a que aquela era uma zona urbana já bem antiga, sem um único terreno vago.

Inicialmente, manteve um passo apressado de quem anda a treinar para uma corrida, mas havia demasiadas coisas para ver, incluindo inúmeros patos na água. Acabou, pois, por reduzir muito a velocidade e até, sem saber como, viu-se sentada num dos muitos bancos existentes a observar o que a rodeava.

O alarme do telemóvel alertando-a para a medicação que lhe tinham receitado apanhou-a de surpresa, não fazia ideia de que já era tão tarde, as horas tinham passado sem que desse conta disso, ao contrário do que acontecia desde a morte do António. Dirigiu-se, pois, para casa, prometendo a si mesma voltar uma outra tarde.

E assim fez. Acabou, até, por se tornar um hábito diário, ou de manhã ou à tarde lá ia ela para esta sua nova “descoberta”. Curiosamente, atendendo aos seus hábitos de uma vida inteira, preferia até o período logo após ao almoço em que o espaço estava mais vazio de gente.

Um belo dia surpreendeu-se, até, a ficar para o almoço no pequeno café que descobrira num recanto do parque. Era a única cliente sozinha, mas isso não a impediu de apreciar a refeição e, sobretudo, aquele belo ambiente.

Pouco a pouco, Maria Leonor foi mudando de hábitos, sem sequer dar por isso. Umas compras agora, uma ida a um restaurante que lhe chamara a atenção ao passar, até uma matiné, coisa que nunca estivera nos seus hábitos.

Sentia a falta de companhia, claro, mas não o desespero de precisar dela a todo o custo por não conseguir estar só. Descobriu, espantada, que até gostava da sua própria companhia.

E quando a empresa turística com quem marcara o cruzeiro à volta do mundo a contactou para saber se pretendia um lugar no próximo, daí a umas semanas, decidiu aceitar fazê-lo só que, desta vez, mais a pensar nos belos sítios que iria ver e não tanto em quem conheceria a bordo ou, até, se encontraria com quem conviver...

Quanto ao condomínio para onde tinha planeado mudar-se, sobretudo pelas suas muitas distrações e equipamentos, pois bem, decidiu vender o andar ainda por concluir e ficar onde estava, usando o dinheiro assim poupado para se mimar futuramente com novas viagens ou outros pequenos prazeres.

Pois, a  mãe, ou antes, os pais, estavam completamente errados. Estar só e sofrer de solidão não são mesmo nada a mesma coisa!

Luísa Lopes

Foto de Atharva Tulsi na Unsplash

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