Homero dirigia pela estrada acidentada em meio a pequenos morros e colinas onde ainda se preservava o pouco da mata original. Baixou os vidros do carro para aproveitar um pouco do ar da bela manhã ensolarada, porém, dependendo da direção do vento, o que vinha era o odor desagradável dos criadouros de porcos que movimentavam a economia local. Num tempo não tão distante, era a madeira que dominava o comércio e a indústria da região.
Ele
procurava conhecer um pouco da história de cada lugar, de cada casa que
demolia. Era uma forma de valorizar os móveis que construía e os objetos
antigos que recuperava para vender como material de demolição. Então, repetia
aos clientes os relatos ouvidos geralmente de gente mais velha.
Sentia
o corpo cansado. A obesidade e o sedentarismo faziam mal para a sua saúde. Já
era mais velho e precisava mudar a rotina. Encontrar companhia se tornou mais
difícil depois de tantos relacionamentos frustrados, mas tinha certeza de que
ainda encontraria o amor da sua vida.
Nessa
viagem visitaria uma casa há muito abandonada, desde a época da guerra na
Região Contestada por Paraná e Santa Catarina. Diziam foi construída por índios
escravizados pelo Major António Salazar, um velho soldado vindo de terras
paraguaias e que arrastou por quilômetros muitos guerreiros guaranis. Ocupou
terras dos pobres bugres e dos membros da Irmandade, um bando de fanáticos, que
seguiam os ensinamentos de um Monge que percorria a região e que parecia
existir por gerações. Todos esperavam pelos seus milagres.
Protegido
por alguém da República, Salazar conseguia se manter em meio aos militares que
combatiam o Exército de São Sebastião. Instalou-se, mesmo com o controle da
Lumber que explorava a madeira em nome do progresso e construía a ferrovia. Era
odiado por todos. Já não bastasse uma bandeira americana hasteada perto dali, também
havia o velho soldado da Guerra do Paraguai instalado no lugar.
Contavam
também que o Major, octogenário, tomou para si Anahi, uma bela índia guarani, de
apenas dezesseis anos.
Impotente,
porém possessivo, a mantinha trancada num quarto secreto, construído na imensa
casa de madeira. Ninguém conseguia acesso a ela, pois os homens que construíram
o velho casarão, foram todos mortos após concluírem o serviço.
Alguns
anos depois o homem morreu, dizem que louco. Porém Anahi nunca foi encontrada.
Como o Major não tinha filhos, a casa foi ocupada por homens do exército. Desde
então, coisas estranhas aconteciam.
Ao
final das batalhas do Contestado, as terras foram divididas por moradores do
local, porém a casa nunca foi ocupada. Diziam que a maldição do Monge fazia com
que as pessoas que ocupassem o local, mesmo que por uma noite, teriam o mesmo
fim que Salazar: loucura e suicídio.
Quando
Homero chegou, percebeu a casa, construída no alto de uma colina. Curiosamente,
a mata fechada no lugar, se abria em volta dela, que apesar do tempo, parecia
ainda muito sólida, mesmo construída sem um único prego. Também conservava
parte da tinta aplicada originalmente.
Pegou
um facão que guardava no carro e abriu caminho até chegar mais perto. Uma
varanda tomava conta de toda a fachada principal da casa, adornada com
lambrequins. Nas janelas, alguns vidros coloridos sobrepunham o fechamento em
madeira. Parecia tudo perfeitamente encaixado. Seria ótimo para os negócios ter
um melhor aproveitamento do material.
Com
cuidado, subiu a pequena escada que dava acesso a porta principal. O assoalho,
apesar do rangido, parecia firme. Apoiou-se na madeira do baixo parapeito,
construído sobre balaústres perfeitamente torneados. Olhou para a vista:
deslumbrante.
Parou
para escutar o som das águas de um riacho, com uma pequena queda d’água, podia se
presumir. Neste momento, o vento começou a soprar mais forte e produzir sons
quando passava pela imponente construção e pelos galhos das gigantes araucárias
também preservadas. O assovio formado parecia trazer consigo um gemido,
súplicas. Por um instante pareceu ter ouvido uma voz feminina, numa língua não
familiar: “Che rohayhu yma guive”.
Sentiu
seu corpo arrepiar, mesmo sem entender o significado das palavras. Só poderia
ser a sua própria imaginação – pensou ele. Ao menos não era o Major querendo
tomar conta da sua alma – Sentiu-se aliviado, embora não acreditasse em
histórias fantásticas. Foram tantas as casas demolidas e em nenhuma delas
percebeu algo de sobrenatural, muito embora algumas delas também se supunha
fossem amaldiçoadas ou assombradas. Apenas folclore local, acreditava.
Havia
tirado a sorte grande. O casarão tinha muito material aproveitável. No interior
da casa encontrou móveis e objetos desgastados pelo tempo e pó, mas que
poderiam ser recuperados e adaptados com certa facilidade.
Puxou
o telefone do bolso e fez várias fotografias. Também tomou nota do que deveria
ser feito na retirada do material da casa. Ainda precisava convencer o fiscal
da prefeitura a autorizar a retirada do material. Nada que um pouco de
dinheiro, um presentinho não pudesse resolver.
Quando
se aproximou da cozinha, havia cheiro de fumaça, porém nem sinal de fogo.
Depois, o aroma de tabaco queimado tomou conta do ambiente. Sentiu-se seguro, o
facão que antes carregava, estava sobre a sólida mesa construída com uma única
e larga prancha do que um dia teria sido uma imponente imbuia.
Empurrou
uma janela, o vento invadiu a casa e junto com ele a mesma voz em tom de
súplica: “Che rohayhu yma guive”. Com
a voz, veio também o perfume de rosas. Sentiu-se atraído por ele. Começou a
percorrer a casa desesperadamente tentando chegar a fonte de tão inebriante
odor. Chegou a uma parede, aparentemente sólida, mas o perfume vinha de lá.
Começou a examinar a madeira aplicada. Não havia abertura, nem uma ventilação
aparente. Precisava de alguma ferramenta para examinar melhor. Quem sabe no
carro tivesse alguma.
Ouviu
um ruído estranho. Havia mais alguém na casa. Os passos eram lentos,
cuidadosos. Apanhou um pedaço de madeira. Esperou. Ouviu-se um grito estridente
e passos rápidos em fuga. Homero sentiu o corpo todo arrepiar. Parecia preso ao
chão, no primeiro instante, depois correu em direção a saída e ao encontro dos
passos que ouvia.
Quando
chegou à varanda, encontrou o sujeito da prefeitura pálido, assustado. O homem
não conseguia falar.
–
Boa tarde! O senhor me assustou. Por que gritou? – perguntou Homero.
O
homem levou ainda alguns segundos para conseguir folego.
–
Não fui eu! Me arrependi de ter entrado. Dizem que quem entra na casa não
sobrevive.
–
Tudo tem uma explicação lógica. Não esperava encontrá-lo hoje.
–
Sabe como é, cidade pequena. Disseram ter visto um carro em direção à casa do
Major. Deduzi que fosse o senhor. Aí pensei que poderia me adiantar algum pela
autorização de demolição da casa. Gostou do que viu?
–
Eu esperava um pouco mais, – disse Homero pensando em melhorar o negócio – mas
estou interessado assim mesmo.
–
Só vou lhe autorizar a demolir a casa pagando a taxa combinada!
–
Depois de avaliar a casa, só posso pagar dois terços do que me pediu. Posso lhe
entregar o dinheiro agora mesmo. Caso não aceite, passo a noite na cidade e na
manhã seguinte vou visitar um outro casarão aqui perto.
–
Está bem, fechado! – respondeu o sujeito de cara emburrada, que salientava
ainda mais o enorme nariz e a verruga assustadora no canto da boca.
–
Acho que vou, já está tarde, na próxima semana envio uma equipe com caminhões e
ferramentas.
–
É melhor desmanchar esta casa logo, quem sabe os fantasmas e suas maldições vão
com ela.
–
Bobagem!
–
Então não ouviu a voz, não sentiu o perfume?
–
Sim, pareci ter ouvido uma voz, parecia uma súplica numa língua estranha.
–
É tupi-guarani: Che rohayhu yma
guive.
–
O que quer dizer?
–
Não sei Tupi-guarani, mas dizem que é algo como “tenho esperado por você!”
–
Deve ser só o vento passando pelas araucárias e que repete um padrão.
–
Bem, já tenho o meu dinheiro, melhor a Prefeitura já tem a sua taxa. Se não se
importa, não quero esperar por Anahi, nem que ela me espere.
–
Até qualquer dia!
Homero
concluiu que tinha tudo o que precisava. O homem da Prefeitura não o
perturbaria mais. Decidiu partir. O dia fora cansativo e ele já tinha o que
precisava. Na volta ficou pensando como seria a figura da jovem Anahi, uma
verdadeira lenda, pensou.
Na
semana seguinte, foi com a equipe para os trabalhos de demolição. Deixou os
equipamentos com os trabalhadores e foi até a cidade se certificar de que o
alojamento estava preparado e que havia mantimentos para a semana.
Quando
chegou na pensão, a senhora que tomava conta manteve a cabeça baixa, mas
demonstrava preocupação. Percebendo, Homero a questionou se estava tudo certo,
se o preço combinado lhe satisfizera.
–
Não tenho certeza se poderá me pagar.
–
A senhora não me conhece, mas o que está combinado é certo. Costumo honrar meus
compromissos.
–
Não questiono isso, o senhor me parece honesto. Mas não tenho certeza se
sobreviverá para me pagar.
–
Já sei, o casarão é amaldiçoado, quem entra nele não sobrevive.
–
Pode parecer bobagem, eu sei. Mas o Cláudio foi mais uma vítima.
–
O Cláudio Costa, o fiscal da prefeitura?
–
Ele mesmo. Dizem que ele foi até o casarão na semana passada, entrou. Depois
disso ficou alucinado. Tirou a própria vida, com uma faca cravada no peito. Seu
corpo, como todos os outros, sem uma gota de sangue. Antes de morrer, gritava:
eu quero lhe encontrar!
Com
fome, Homero foi até a padaria, tomar um café. Só o que se falava era sobre a
morte do fiscal e da maldição do casarão. Todos olhavam para ele com olhar de preocupação.
Na verdade, todos acreditavam que ele seria mais uma das vítimas.
A
atendente se aproximou e despejou o café e o leite na xícara dele. Perguntou:
–
O senhor entrou na casa?
–
Sim, na semana passada e hoje pela manhã.
–
Então aproveite a oportunidade que a vida lhe deu e vá embora, a menos que
queira ser o próximo.
Apressou-se
com o café. Talvez fosse melhor acabar tudo logo e partir. Não podia deixar que
sua equipe se abalasse com a história. Ele mesmo precisava contar-lhes, para
evitar medo ou preocupação.
Quando
chegou ao casarão, tudo estava muito silencioso. Mal tinham começado a
trabalhar e já estavam descansando – Pensou.
As
araucárias voltaram a ter os galhos balançados pelo vento: Che rohayhu yma guive.
O
perfume de rosas tomava conta da casa. Ele foi entrando, procurando pelos
homens. O único ruído era o de um pequeno rádio a pilhas, fora da faixa de
sintonia. Quando chegou ao cômodo que visitara pela última vez, na semana
anterior, a parede estava aberta. Aparentemente os homens haviam descoberto
como abri-la ou alguém de dentro o fez. No chão, os corpos dos cinco homens que
compunham a equipe. Pela disposição dos corpos, pareciam ter se digladiado, com
as ferramentas que possuíam. Os corpos pálidos, sem uma gota de sangue
derramado ao chão.
Pensou
em correr, mas o perfume se acentuava, vindo depois da parede. Isto o atraía.
Ele parecia anestesiado. Tudo o que queria era descobrir de onde vinha o
cheiro.
Entrou.
Havia uma escada que descia até o que poderia ser descrito como uma adega,
escavada na rocha. Uma pequena abertura permitia a entrada de pouca luz, por
uma estreita janela em vidro sujo pelo tempo.
Apanhou
o telefone celular do bolso. Ligou a lanterna. Apontou para o fundo do
ambiente.
Sentiu
sua espinha gelar. A luz refletia em dois olhos negros como a noite, olhos que
pareciam não reagir a luz.
A
boca sussurrava: Che rohayhu yma
guive. Os negros cabelos quase tocavam os pés da moça com belo corpo,
seminu.
Tudo
o que Homero queria era tocar aqueles lábios. Foi o que fez. Nunca encontrara
tanta beleza numa só mulher.
Sentia-se
bem, não percebendo que suas energias desapareciam. Ao final, Homero sentiu uma
dor insuportável quando o coração lhe foi tirado do peito pelas mãos de longas
unhas e de força descomunal. Salazar ainda não desistira de afastar os homens
de sua Anahi. Se transformava atraindo cada um que se aproximava, os
enlouquecia ou sugava suas forças como forma de perpetuação.
Homero
caiu no chão, ao lado dos restos do que um dia foi uma bela jovem. Envolta em
sua fíbula, uma argola presa a uma corrente fixada na rocha.
A
parede voltou a se fechar. O casarão ainda abrigaria por um bom tempo a
maldição do Monge e seus fanáticos.
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