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sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Nunca se sabe

 


Deu mais uma reviravolta, tentando ver-se melhor no muito manchado espelho que trouxera para a sala. Era totalmente inadequado, claro, mas mesmo assim era o maior que existia em casa da avó. Apesar da imagem pouco nítida, dava para ver que a nova blusa ficara bem catita.

Satisfeita, tirou várias selfies antes de a despir e pendurar no cabide para nova foto. Apostava que nem 24 horas duraria no site antes que alguém a comprasse. O único problema do êxito das peças que fazia era estar sempre sem stock, sendo obrigada a trabalhar muitas horas por dia para ter alguns produtos para venda. Não que se queixasse, o dinheirinho que entrava continuamente era mais do que uma justa compensação e bom jeito lhe daria quando tudo voltasse à normalidade. Poderia até usá-lo para abrir uma loja a sério ou para contratar quem lhe fizesse os modelos que desenhava.

Quem diria que uma estadia forçada em casa da avó por causa do maldito vírus levaria a uma tal reviravolta na sua vida!

Ainda se lembrava do imenso sentimento de revolta que sentira uns meses antes quando os pais insistiram que, já que “não fazia nada”, se mudasse para aquela vilória para cuidar da avó, totalmente isolada devido ao fecho do centro de dia que costumava frequentar. Ela, a menina dos shoppings e dos clubes, numa parvónia daquelas! E ainda por cima com a avó, boa senhora, claro, amava-a, sem dúvida, mas era totalmente retrógrada. Nem Internet tinha!

Bom, essa parte fora resolvida, os pais sabiam que faria a vida negra à avó se ficasse fechada entre quatro paredes sem qualquer distração, por isso contrataram um serviço de cabo para que pudesse continuar a ver os seus programas habituais e frequentar as suas muitas redes sociais. Como na cidade os seus antros favoritos estariam fechados ou com “horários inconvenientes”, tendo pois de passar a maior parte do tempo em casa com os pais, ainda por cima ambos em teletrabalho, acabou por ceder.

Os primeiros tempos até nem foram maus, a avó não exigia muita atenção, sobretudo porque podia ver agora em casa programas que estava habituada a ver no centro de dia. E Liz passava a maior parte do seu tempo na Internet a falar com “amigos” e a pesquisar as últimas fofocas das suas celebridades favoritas.

Mas com o passar dos dias a coisa tornou-se monótona. Na vida pré-Covid passava uma boa parte do dia – e da noite – fora com amigos e conhecidos, frequentava todo o tipo de locais mais ou menos divertidos, enfim, pouco tempo passava a sós consigo. Nunca fora muito de introspeções ou leituras, o estudo não lhe interessava minimamente e não fazia a menor ideia do que faria um dia, “quando fosse grande”. Deixava-se simplesmente flutuar ao sabor da maré, sem pensar no amanhã.

Agora, uma vila que nunca tivera grandes distrações e agora ainda menos tinha, estar reduzida à TV e às redes sociais começava a ser chato. É claro que podia fazer umas caminhadas, a casa da avó ficava num dos extremos da povoação e tinha bem perto alguns bons trilhos, mas natureza e exercício físico nunca tinham sido o seu forte.

Um dia, a avó, farta de a ver a arrastar-se pela casa aos ais e suspiros, sugeriu que aproveitassem aquela clausura forçada para limparem e arrumarem o sótão, onde não ia há anos e que estava cheio de caixas, baús e malas, alguns ainda do tempo da mãe de quem herdara a casa. À falta de melhor, Liz concordou, apesar de saber que lhe caberia a maior parte do trabalho uma vez que a avó dificilmente subiria a escada de acesso, cabendo-lhe por isso ir trazendo para baixo o que pudesse.

A ideia era verem o que ali estava guardado e separar o que era de guardar do que seria dado ou deitado fora, eventualmente.

Era um trabalho cansativo e monótono, ao fim de uma dúzia de caixas ainda não vira nada que lhe despertasse a atenção, apesar de a avó ter mil histórias para contar sobre a maior parte das coisas que iam saindo das caixas. Mas eram sobretudo álbuns e artigos pessoais de familiares que nunca conhecera e de quem, na maior parte das vezes, nem sequer ouvira falar.

Chegou finalmente ao primeiro baú, demasiado grande e pesado para ser levado para baixo. A solução era, claro, abri-lo e ir levando o conteúdo aos poucos.

Com grande surpresa sua estava cheio de cortes de tecidos, uns maiores, outros menores, de todos os tipos e feitios. Recordou então que a avó, antes de casar e nos primeiros anos de casada, fora modista na cidade onde então vivia, numa época em que uma boa modista era muito apreciada e procurada. Só parara depois de nascer o quarto filho, não precisavam do dinheiro e já tinha trabalho que chegasse com a casa e a família.

Eram pois tecidos muito antigos mas com padrões fabulosos e de uma excelente qualidade. Liz, que adorava moda e que estourava prontamente a mesada em roupa, ficou encantada. E pela primeira vez desde que chegara esqueceu-se de que estava exilada e sem distrações, rebuscando afincadamente no resto do sótão por mais material

E não ficou desiludida. As caixas e baús do fundo continham mais tecidos, moldes, botões e todo o tipo de fitas e acessórios. A avó já nem se lembrava de ter guardado aquilo tudo para o caso de um dia voltar a trabalhar.

Liz entrou num frenesim de atividade, procurando modelos online, imaginando este ou aquele tecido como uma blusa, uma saia, um vestido... E a suspirar por não ver à venda nada do que lhe vinha à mente.

Talvez por estar farta de a ouvir, a avó sugeriu então que fizesse ela essas peças. O material estava ali e a sua velha e fiel máquina de costura também. E apesar de já não ver suficientemente bem para coser, poderia sempre orientá-la, sobretudo porque em miúda Liz aprendera, muito à força, o básico da costura.

A ideia não lhe agradou totalmente, mas francamente, sempre era melhor do que nada. Escolheu pois um bonito e leve tecido e, com muitos conselhos e ajudas da avó, fez a sua primeira saia.

Gostou tanto do resultado que pôs prontamente uma foto nas suas redes sociais, onde foi um êxito.

Entusiasmada, começou a fazer mais peças, inspirando-se muitas vezes nos velhos moldes e revistas que encontrara e que adaptava para um estilo mais moderno. Publicava sempre os resultados e surgiram prontamente pedidos de amigas para que lhes fizesse algo similar.

E sem saber bem como viu-se com um próspero negócio de moda, a tal ponto que se vira forçada a procurar e encomendar online mais material.

Quem diria que o maldito vírus a fizera descobrir um talento e uma carreira!

 

Luísa Lopes

Imagem de Gordon Johnson por Pixabay

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