“O
bando de homens está com medo. Sei-o bem, porque sou um cão e ao meu olfacto
chegou o cheiro ácido do medo”.
A
maior parte das vezes em que sinto este cheiro, facilmente descubro de onde vem
esse medo. Hoje está a ser muito mais complicado, porque por mais que me
esforce ainda não consegui descobrir a razão de tanto medo. Não sei se estão à
espera de serem vítimas de alguma emboscada ou se o medo advém daqueles
momentos que antecedem os grandes golpes.
Se
estão a preparar um assalto a casa, desiludam-se, ó medrosos, que eu cá estou para
vos fazer frente. Sou um cão de guarda e desde cachorrinho que tenho treino
específico para esse mister.
Não
é para me gabar, mas posso dizer que já fui posto à prova várias vezes e com
grande sucesso. Lembro-me que uma vez tive de me confrontar com um perigoso
malfeitor, de grande calibre e sem ajuda de ninguém consegui pô-lo em fuga. Nem
é por acaso que os meus donos decidiram baptizar-me com um nome cheio de
significado, Leal.
O
cheiro ácido do medo chega-me ao olfacto cada vez mais intenso. A sua origem
não pode ter nada a ver com coisas comezinhas. Tenho cá um arrepiante
pressentimento de que o medo tem a ver com algo de sobrenatural, talvez com
almas maléficas do outro mundo.
Afinal
de que têm eles medo? Poderá também ser de algum animal feroz ou de algum
ajuste de contas entre bandos rivais. Tenho ouvido histórias contadas ao serão
acerca de autênticas guerras. Continuo sem dar resposta a esta minha
interrogação.
Também
não consigo distinguir bem, quase que nem vejo sombras, porque é noite cerrada
e o único fraco ponto de luz está colocado no lado contrário. Vou-me esforçando
por tentar descortinar alguma coisa, mas por mais que tente fazer jus à minha
excelente visão, nada consigo. Sei que são cinco, não pela intensidade do som,
o bando fala baixo, mas porque oiço cinco timbres bem diferentes de sons
vocais. Sou sobredotado nestas coisas da audição, tenho ouvido absoluto e
consigo facilmente distinguir os timbres uns dos outros, no meio de qualquer
algaraviada. Também sou capaz de afirmar com toda a certeza que o bando é
composto por homens não muito velhos, porque quando falam não arrastam as
palavras, têm a fala fluente.
Sou
capaz de descodificar o mais insignificante ruído, nasci assim, confidenciou-me
uma vez a minha mãe, que recorria frequentes vezes a mim, quando andávamos
juntos pelos montes da herdade de noite. A guarda que montávamos só era eficaz
se soubéssemos distinguir todos os ruídos, para saber aquilo com que podíamos
contar. A minha mãe ensinou-me muitas coisas importantes que me ajudaram ao
longo da vida e uma era conseguir distinguir bem os sons uns dos outros.
De dia é mais fácil, porque ouvimos e vemos
bem,
de noite, além da visibilidade ser reduzida, ela está cheia de ruídos
esquisitos e como não vemos os autores deles, ficamos perdidos.
Hoje
estou completamente perdido e desorientado, com o que está a acontecer neste
momento. Oiço as diferentes falas, mas não consigo distinguir quem é quem, mas
sei que o bando de homens está com medo, não pelo que dizem, mas pelo cheiro
que chega ao meu olfacto.
Agora
oiço um outro som que vem chegando, mas que não consigo descodificar. Não
consegue chegar lá, fico-me pelo ruído e não sei de que ruído se trata. O som
não me é familiar, nunca antes em circunstância alguma o ouvi. Nada tem a ver
com os sons que oiço desde o meu nascimento e que tenho aprendido a
distingui-los.
Não
consegui descodificá-lo, só fui capaz de o associar a uma imagem virtual ao
decompor aquele som em todas as suas camadas. O resultado deu numa espécie
carreta puxada por estranhas criaturas. Assim que aquela chocolateira estancou,
ouvi um ranger de uma porta a abrir-se e um movimento de alguma coisa a saltar
paro o chão.
Não
sinto nenhum odor. Essa coisa que saiu da carreta não tem cheiro. Um verdadeiro
fenómeno da natureza, porque tudo o que é da natureza tem cheiro. O cheiro ácido do medo
veio em crescendo, à medida que aquela coisa sem cheiro caminhava ao encontro
daquelas cinco criaturas. Quando o meu olfacto estava prestes a atingir o grau
máximo do suportável aquele bando de homens também deixou de ter cheiro.
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