Na Madrugada dos Tempos – Parte 2
Há pessoas que são excelentes a executar, mas que não querem liderar, têm medo, não querem tomar decisões. Essas não servem para líderes. Mas fazem coisas que os líderes não fazem.
Belmiro de Azevedo
Empresário e industrial português
(1938-2017)
Uma cabeça espreitou sobre a crista do monte; primeiro apenas um, mas, depois outros se lhe seguiram nervosamente. O vento gelado soprava e pequenos flocos de neve esvoaçavam, colando-se ao rosto e cabelos deles. Havia vários dias que o céu estava coberto de chumbo e a temperatura caíra a pique assinalando o fim daquele verão envergonhado.
Eram um grupo heterogéneo; cerca de vinte homens e mulheres, uns com grossas túnicas de lã e outros cobertos com peles mal curtidas. Todos traziam cabelos compridos que usavam soltos ou amarrados em tranças, alguns dos homens também tinham tranças nas longas barbas. Tinham os rostos e as barbas cobertos de lama branca onde pintaram riscas de carvão. Empunhavam lanças com pontas de pedra lascada e machados do mesmo material.
Assim que subiram aquele monte perceberam que haviam chegado ao seu destino; após a descida que se seguia, a terra lançava-se novamente em abrupta subida para outro monte ainda mais alto que ostentava na sua face a abertura de uma enorme gruta onde tremeluzia a luz de uma fogueira. Haviam partido da aldeia ainda de noite, para chegarem ao raiar do dia.
Baixaram-se, ocultando-se de novo atrás da crista e olharam uns para os outros.
— Chegamos. — Anunciou desnecessariamente com voz grave o homem que ostentava várias tranças no cabelo e na barba cobertos de barro branco. — É ali que eles vivem.
— E agora, como fazemos? — Perguntou um dos mais velhos, com grandes barbas raiadas de pelos brancos. — Atacamos enquanto ainda dormem?
— É o melhor! — Considerou um dos mais novos. — Eles são mais fortes do que nós, qualquer um deles pode com dois de nós… nem sequer sabemos quantos ali estão. Sabes, pai? — Dirigiu-se ao das tranças.
— Não, Asil, não sei. — O homem brincou pensativamente com uma das tranças da barba. — Nunca vimos grupos de caça maiores do que três ou quatro acho que serão poucos mais do que nós, se contarmos as mulheres que possam estar lá.
— Tens de decidir, Erem. — Exigiu o mais velho para o das tranças. — Era o teu filho e meu sobrinho, mas tu é que és o chefe. Foi a ti que escolhemos seguir.
O visado fitou o tio Lemi pensativamente. Quantas vezes vira nele o pai, Birol, tão parecidos que eram. Chegou mesmo a pensar se ele o tinha mesmo seguido ou deixara o irmão a pedido deste para proteger o filho.
Já se havia passado muito tempo desde que abandonaram o clã do Rio Brilhante. Asil era ainda uma criança de colo e Naci crescia na barriga de Zia. Apesar dos desacordos frequentes com o pai, a vida era boa. Não havia fome entre eles; as mulheres enterravam algumas sementes que, junto com as cabras montesas que aprisionavam, as frutas que conseguiam apanhar e a caça abundante, dava para satisfazer a todos. Nos últimos tempos, porém, o seu mundo modificava-se; o chão tremia com frequência e o lago salgado, junto do qual se haviam fixado, alargava-se cada vez mais.
O Xamã dizia que era o Rio Brilhante que enchia o lago, mas ninguém percebia como é que, com tanta água doce, as águas continuavam salgadas.
Gradualmente, os pequenos lameiros que semeavam foram sendo engolidos e a própria aldeia estava novamente ameaçada. A incerteza pairava sobre eles; uns queriam simplesmente continuar a afastar-se um pouco de cada vez, à medida que as margens cresciam, outros queriam ir para nascente, de onde era originário um dos genros de Birol. O chefe, porém, decidiu que rumariam a poente a caminho da gigantesca cascata que um outro clã disse que engordava o “seu” lago; teria de ser a sua vontade a prevalecer.
Foi o filho do chefe, no entanto, o causador da dissensão; queria seguir as estrelas-guias, escalar as montanhas para as terras altas e entrar no território dos homens-macaco. Muitos anos antes dele nascer, estavam ainda cobertas de gelo, mas agora eram grandes extensões verdejantes com manadas de auroques, gazelas e alguns mamutes. Não queria seguir o pai e Birol, que era um grande líder amado por todos, aceitou a decisão do filho com grande tristeza. O clã do Rio Brilhante, cuja dimensão de mais de cem elementos era extremamente invulgar, ficou reduzido a menos de setenta.
Erem e a sua companheira Zia com os seus quatro filhos, dois deles já com mulher e crianças, fizeram-se acompanhar de dois irmãos dele e três dela com respetivas famílias, além do tio Lemi, as suas duas mulheres e toda a descendência, formaram um novo clã com cerca de trinta almas. Do alto de um promontório acenaram o adeus a Birol e aos seus companheiros no fundo do vale, que partiam ao longo da margem do lago salgado, rumo ao sol poente. Aquele promontório tinha a forma de uma cabeça de leão e resolveram assumir esse nome; assim nascia o clã do Leão da Montanha.
Cedo conseguiram deixar as tendas e construir casas em pedra ou madeira que cercavam pequenos campos onde cresciam alguns legumes e vagueavam as cabras do rebanho comum. Nasceram mais crianças, embora também tenham morrido algumas e alguns adultos também. Os acidentes na caça e as doenças aconteciam e os recém-nascidos por vezes morriam à nascença ou com poucos dias de vida, mas o saldo era positivo e agora eram quase quarenta indivíduos.
Nos primeiros tempos, Erem ainda fez deslocações esporádicas à Pedra da Cabeça de Leão para olhar as terras baixas de onde viera, na esperança de ver Birol e os seus homens. Mas em vez disso, via como o lago se tornava descomunal, a outra margem perdendo-se de vista e poucos animais se divisavam junto das águas salobras.
Tiveram quase logo alguns recontros violentos com pequenos grupos de homens-macaco e isso raramente acontecia no vale do lago salgado pois normalmente não desciam lá, mas Erem já sabia que este era o território deles. Quem os batizara, fora alguém do clã de Birol dizendo que, cabeludos como eram, pareciam os macacos que viviam nas árvores do outro lado do lago salgado. Eles mantinham-se à distância e fugiam à sua aproximação dos membros do clã, o problema era que, quando a caça escasseava, tornavam-se mais atrevidos, atacavam os caçadores, ou roubavam a carne que secava ao pé das fogueiras.
Normalmente, os confrontos cingiam-se a uma troca de pancadas com as lanças grossas que usavam, ou algumas pedradas para afugentar, mas o último deles fora o pior; os caçadores reagiram e não deixaram que os homens-macaco levassem a caça. Além dos costumeiros braços partidos e cabeças rachadas, também os atacantes levavam alguns feridos com eles, mas Nuri, o filho mais novo de Erem e Zia ficara caído sem vida; uma pancada na cabeça fora-lhe fatal.
Manuel Amaro Mendonça
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