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sexta-feira, 29 de julho de 2022

Menina Bonita

 



Nasci há cerca de meio século! Dito assim, parece horrivelmente antigo, mas a verdade é que nasci no século passado, na década de sessenta.

Era um mundo diferente, aquele para o qual abri os olhos, no longínquo ano de 1965. Governava António de Oliveira Salazar, num país, que há quatro anos via a sua juventude esvair-se para o “ultramar”, na chamada guerra colonial.

Quase não recordo os primeiros anos, claro, tirando uma ou outra história que, à força de ouvir contar tantas vezes pelos familiares, já não sabemos se se trata realmente de uma memória nossa.

As primeiras recordações que sei serem minhas, e que consigo datar, serão por volta dos cinco, seis anos, pouco tempo antes de começar a escola primária. A minha baliza temporal é a bandeira a meia haste que me recordo da minha mãe ter dito ser por causa da morte do Salazar que foi em 1970. Eram tempos muito diferentes, lembro-me da da leiteira que empurrava um carrinho e passava porta a porta a vender o leite a granel, da padeira com a enorme canastra à cabeça, por vezes a minha avó ou a tia-avó, que distribuía o pão. O cheiro dos cigarros “Definitivos” que o meu bisavô fumava, o sabor do toucinho salgado e das azeitonas da mercearia da esquina.  A moeda brilhante e o “Simolzinho” que o avô dava na pequena tasca, por onde passava ao fim do dia, ao regressar do emprego.

Em casa, o meu mundo, além da habitação propriamente dita, era o quintal partilhado com uma vizinha, onde havia couves, feijão verde e uma figueira que dava figos vermelhos muito doces. A vizinha tinha galinhas e coelhos. Nesse quintal, havia também o barraco, como chamávamos à pequena construção onde a minha mãe “tangia” a máquina de tricotar, com o rádio a transmitir o folhetim “Simplesmente Maria”. Era um mundo inteiro cercado pela porta para a estrada por um lado e pelos muros que separavam de outro terreno... desconhecido.

Não consigo saber quando nem porquê me comecei a interessar pelo outro lado do muro... talvez a curiosidade pelo desconhecido, talvez por ouvir vozes do outro lado ou possivelmente por escutar risos de criança.

Imagino que, quando saltei o muro a primeira vez, me deva ter sentido como o Flash Gordon pela primeira vez em Mongo, ou como os primeiros exploradores portugueses nas costas de África. Não ponho dúvidas que devo ter explorado todos os recantos daquele mundo novo que eram áreas extensas, muitas vezes maiores que o meu quintal, com casebres abandonados, árvores de fruto e duas casas habitadas, uma à esquerda e outra à direita da minha; Na da direita, rapidamente aprendi que não devia aportar o meu navio explorador naquelas paragens; Era a morada de um terrível e feroz animal! Só soube mais tarde que se chamava Dragão. Por mim, fiquei aterrado quando me vi frente àquela enorme e temível criatura, que saltava e espumava dentro de uma imensa jaula, ladrando a sua indignação pela minha ousadia e mostrando os enormes dentes com que ameaçava destroçar-me. De certeza que devo ter tido a minha quota parte de pesadelos com aquela horrível fera. Na da direita, encontrei um tesouro... a menina bonita, da minha idade, com compridos cabelos negros, aos cachos e uns vivos olhos castanhos que me olhavam com curiosidade e admiração.

Tornámo-nos, claro, companheiros inseparáveis e juntos vivemos aventuras maravilhosas a desvendar aquele mundo sem fim que era o terreno nas traseiras da minha casa.

De que falaríamos nós e quais seriam as brincadeiras, naqueles tempos longínquos, em que o mundo rodava devagar e vivíamos vidas inteiras, até que uma das nossas mães nos chamasse para comer. Cantávamos a canção da Tonicha que nos maravilhara os olhos e os ouvidos no festival da canção... ainda hoje, os versos da “Menina do Alto da Serra” me parecem que foram feitos para ti, a minha menina bonita de cabelos aos cachos:

“Menina de saia aos folhos,
Quem na vê fica lavado.
Água da sede dos olhos,
Pão que não foi amassado.
Menina do riso aos molhos,
Minha seiva de pinheiro.
Menina de saia aos folhos,
Alfazema sem canteiro”

Quando comecei a frequentar a 1ª classe, numa escola a poucas centenas de metros de casa, comecei a ver-te menos vezes, mas todos os minutos eram para saltar o muro e reencontrar a minha menina bonita de olhos brilhantes.

As minhas idas à mercearia para recados incluíam o livro onde era anotada a despesa para ser paga no fim do mês. Era o tempo em que os detergentes para roupa traziam, por  brindes, brinquedos para as crianças, que os rebuçados, vinham embrulhados em papeis que eram cromos para colecionar. O Helmer desesperava a tentar apanhar o Pernalonga, o Pápaléguas fazia gato sapato do coiote, o Daffy Duck e o Picapau endoideciam todos os restantes.

Quando passei para a 3ª classe houve um grande acontecimento, a nova escola primária, acabada de construir há uns anos, foi inaugurada com pompa e circunstância. Nunca tinha visto tantos e tão bons carros, consegui ver até o professor Marcelo Caetano e eu e mais umas dezenas de crianças não perdemos a oportunidade de correr ruidosamente atrás da viatura oficial.

Os quadros afixados, um de cada lado do crucifixo que dominava a parede sobre o quadro negro, agora tinham outro significado. Uns meses depois, tiraram-nos... dizem que por causa da liberdade, na altura não percebi muito bem. Por outro lado foi fantástico terem vindo demolir o muro que separava o recreio das meninas e dos meninos. Agora podíamos fazer tropelias numa área muito maior.

De repente, gritava-se “Viva a liberdade!”, todos andavam com cravos vermelhos ao peito e a “Gaivota voava com asas de vento e coração de mar”.

“Uma gaivota voava, voava,
Asas de vento,
Coração de mar.
Como ela, somos livres,
Somos livres de voar.

“Tomaram conta da quinta dos carros!”, disse-me um colega e eu fui ver; Os portões estavam escancarados e as paredes cobertas de letras pintadas em vermelho, os jardins da entrada estavam cheios de caixas, móveis, lixo... uma pena.

Também eu e tu, menina morena, do cabelo aos cachos, brincamos aos soldados libertadores, que expulsaram os homens maus que não deixavam que fossemos livres... o que quer que isso quisesse dizer.

Agora éramos mais... e tu tinhas duas primas que começaram a vir brincar connosco e eu tinha o meu irmão mais novo e o meu primo. Os seis, éramos um exército difícil de dominar. Foi nesses dias maravilhosos que revivemos os episódios da novela “Gabriela”, tu a bela Gerusa e eu o apaixonado Rômulo. Meses mais tarde, estávamos na base lunar, que seria construída num futuro longínquo,  em 1999. Tu a enigmática doutora Helena e eu o sisudo comandante Koenig.

Era a chegada dos retornados e por todo o lado havia pessoas, umas tão brancas como nós, outras nem tanto, que falavam um português diferente e olhavam-nos com sobranceria... enfim, quando cá chegaram, eu já cá estava, não precisei deles até àquele momento, não iria ser agora que iria precisar. Uma vez, fui a uma mercearia acabada de comprar por um desses retornados e, coisa que nunca tinha visto, andavam atrás de mim a ver se roubava alguma coisa!!! Do alto dos meus onze, quase doze anos, nunca disse nada a ninguém, mas a ofensa bastou-me e nunca mais lá pus os pés.

No ano seguinte, o espaço 1999 tinha que dividir o seu espaço com a escrava Isaura e eu fui o malvado Leôncio que tudo fazia para te prender a ti a doce e inocente Isaura.

Nessa época de descobertas, foi fácil perceber que o feminino e o masculino se atraem em todas as espécies e a aproximação entre mim e a tua prima estava a provocar efeitos em nós. Foi fácil roubar um beijo trapalhão. Quando nos surpreendeste, éramos demasiado jovens para perceber a tua indignação, e eu, como um idiota, achei que estavas apenas preocupada com a tua prima...

Aquele foi o último ano que brincamos juntos. Com a entrada para o ensino secundário, o tempo era pouco e as novas amizades, criaram laços que nos puxavam em direções diferentes.

O “mundo” continuava em revolução. Ramalho Eanes foi eleito presidente da republica e Mário Soares o primeiro ministro... as coisas estavam más para a política, foi a primeira vez que ouvi falar em FMI. No Vaticano, assumia o papado João Paulo II.

Continuei a ver-te, mesmo assim, a espaços até ao dia que fizeste a tua festa de quinze anos, ali mesmo, num dos edifícios abandonados, daquele mundo perdido que outrora desvendaste comigo. Era ainda a época dos bailes de garagem. Durante uns dias, enquanto preparávamos o espaço, contatei de novo contigo. Os teus olhos brilhantes, o teu cabelo negro, ondulado, traziam recordações e nostalgia. Lembramos as nossas brincadeiras e os teus olhos pareceram brilhar ainda mais. No tão esperado dia da tua festa, havia muita gente que eu não conhecia. Os teus amigos novos, chegados contigo de um mundo onde eu não existia. Fomos dançar e senti em ti, na tua flexibilidade e leveza, um grau de evolução muito superior ao meu, mais mulher, mais adulta. Mas foi quando te vi dançar com os teus novos companheiros, com o teu novo amigo, que eu percebi que, a menina bonita dos cabelos negros e olhos brilhantes, já não era minha.



À "minha" eterna Zézinha 
1964-2018


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