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sábado, 3 de julho de 2021

COM UM BERÇO NAS COSTAS



 

“Ontem, à meia-noite, estando junto

a uma igreja, lembrei-me de ter visto

um velho que levava às costas isto:

um caixão de defunto”.

Alphonsus de Guimaraens (1870-1921).

 

Por Milton Rezende

 

Depois de muitos anos,

tentando ainda me livrar

das marcas do passado

fui ao cemitério retirar

os ossos do meu amigo.

 

Lembro-me de ter deixado

uma pedra em formato de

concha, sob a qual estavam

os seus objetos pessoais e

toda a minha lembrança.

 

Era meia-noite no relógio

da igreja e um velho sentado

cochilava com a sua carcaça

de quem estava prestes a partir

e abandonar de vez a praça.

 

Antes, porém, seria necessário

àquele velho feio e deformado

atravessar a ponte de concreto

armado e alcançar o outro lado,

onde não havia nada além do pátio.


Surpreendi o velho em sua travessia

quando eu vinha vindo em sentido

contrário e voltando dos bares que

estavam situados na margem oposta,

onde a vida era só queixa e desamparo.

 

O homem trazia em suas costas

uma caixa de madeira envernizada

e cheia de alças de metal dourado,

semelhante aos caixões que eu via

expostos na porta da casa funerária.

 

E perguntei-lhe, já meio bêbado,

o que ele carregava nas costas

e se era pesado – disse-me então

e sem olhar para o meu lado,

que ia levando apenas o seu leito.

 

De súbito, ocorreu-me o fato

e a lembrança que me levara ali:

desenterrar os restos mortais

do meu amigo, depois de passados

alguns anos, conforme combinado.

 

Mas não sei se fui ao lugar errado:

o certo é que encontrei apenas,

na escuridão da casa dos mortos,

somente uma velha caixa de amianto

e pedaços de tubos galvanizados.

 

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