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quinta-feira, 8 de julho de 2021

A Última Carta

 


O João teria adorado o seu funeral. Muita gente, montes de flores, lágrimas, claro, mas também inúmeras histórias sobre uma vida bem preenchida. E ela, muito elegante no vestido negro de que ele tanto gostava, com uma écharpe cinzenta a cobrir o decote pouco apropriado para a ocasião, a tentar conter as lágrimas por saber que ele detestava vê-la chorar.

O que lhe valera fora a Catarina, a sua melhor amiga desde a juventude, quase uma irmã, que a amparara e passara a cerimónia toda a chorar copiosamente, dando largas ao choro que ela não se permitia soltar.

O cortejo até ao cemitério fora impressionante pelo número de viaturas, entre colegas de trabalho, amigos, familiares, alguns vindos de bem longe, e até meros conhecidos que não tinham deixado passar essa oportunidade de lhe prestar uma última homenagem. Sim, podia-se dizer que o seu João fora muito apreciado em vida e pelo que se via, acarinhado nos seus últimos instantes.

Não havia dúvidas, ele teria realmente adorado toda aquela pompa e aparato, extremamente extrovertido e muito dado, sempre gostara de ser o centro das atenções e hoje era-o, certamente.

Talvez fosse por isso que se davam tão bem, uma vez que ela era muito calada e tímida e nada lhe agradava mais do que passar despercebida, era mesmo uma “espetadora inata”, como lhe chamava o marido, preferia observar a participar. No caso deles a velha expressão de “os opostos atraem-se” era certamente verdadeira.

Teria pois preferido algo mais modesto, apenas meia dúzia de pessoas mais chegadas, onde não tivesse de se lembrar constantemente de que sendo a viúva, tinha um papel central a desempenhar, mas ficara de tal modo paralisada pelo choque que nada decidira e fora Catarina e a família do marido que tudo tinham organizado, “como o João quereria”.

Quando se viu finalmente só em casa, tendo convencido com alguma dificuldade família e amigos de que estava bem e só precisava de descansar um pouco, pôde dar largas ao desespero pela perda do marido de que nem se chegara a despedir como deve ser. Quando saíra de manhã cedo naquele dia fatal para uma breve viagem de negócios, estava demasiado sonolenta para mais do que um breve aceno de adeus, voltando imediatamente a adormecer.

Como desejava agora que ele a tivesse acordado para que tomassem um café juntos e o fosse depois acompanhar ao carro!

Ao maldito carro,  a sua “crise de meia idade”, como ele dizia meio a gozar, o causador de toda esta desgraça. Sim, fora excesso de velocidade num dia chuvoso, mas se não tivesse trocado de carro uns meses antes não iria certamente tão depressa e as consequências do despiste teriam sido menos graves. Num carro desportivo como aquele, uma autêntica bomba, a tentação de se pôr à prova era demasiado grande e acelerava-se mesmo sem dar por isso.

Nunca se sentira à vontade nele, mas também nunca se atrevera a mostrar o seu desagrado, sempre que estava prestes a sugerir uma nova troca por um modelo mais discreto e menos potente o ar de miúdo satisfeito do marido impedia-a de abrir a boca. E o resultado estava agora à vista. A sua única satisfação, se é que se lhe podia chamar isso, é que nunca mais teria de o ver, fora diretamente para a sucata.

A caminho da cozinha para ir buscar um copo de leite para levar para o quarto caso lhe desse a fome durante a noite, uma vez que pouco ou nada comera desde a véspera, reparou que alguém, possivelmente a irmã, recolhera o correio e tinha-o empilhado na mesinha da entrada. Não lhe ia pegar, claro, quem pensa em correspondência numa ocasião destas, ainda por cima a maior parte devia ser publicidade ou contas, mas de repente reparou que o envelope de cima tinha a letra do João.

Estacou imediatamente, pegou-lhe por uma das pontas, quase como se fosse uma bomba, e viu que era efetivamente dele e que lhe estava endereçada. Que querido! Sabia como detestava e-mails e enviava-lhe sempre cartas “a sério” durante as suas inúmeras ausências, às vezes apenas meia dúzia de linhas sem nada de importante.

Mas esta devia ter sido enviada ainda antes da sua partida, o acidente dera-se a menos de duas horas de casa e àquela hora não haveria de onde enviar uma carta. Seriam possivelmente algumas recomendações sobre assuntos a tratar na sua ausência, sabia bem que ela era bastante esquecida e por isso deixava-lhe sempre listas muito completas com tudo o que era necessário fazer.

Fosse como fosse, era a última carta que receberia dele. Só de pensar nisso, desfez-se em lágrimas, as que não chorara durante toda a cerimónia e também no enterro. E foi a soluçar que a levou para o quarto, pousando-a na mesinha de cabeceira enquanto se despia e enfiava uma antiga camisa do marido que usava sempre para dormir quando ele se ausentava.

Já na cama e um pouco mais calma, abriu cuidadosamente o envelope, para não o estragar, retirou o maço de folhas que continha, abriu-as sobre o lençol, enxugou as lágrimas para poder ver melhor e houve uma frase inicial que lhe saltou imediatamente aos olhos:

“Minha querida, sei que nunca entenderás porque te deixei e fui viver com a Catarina...”

Luísa Lopes

Photo by Sigmund on Unsplash

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