O João teria adorado o seu funeral. Muita
gente, montes de flores, lágrimas, claro, mas também inúmeras histórias sobre
uma vida bem preenchida. E ela, muito elegante no vestido negro de que ele
tanto gostava, com uma écharpe cinzenta a cobrir o decote pouco apropriado para
a ocasião, a tentar conter as lágrimas por saber que ele detestava vê-la
chorar.
O que lhe valera fora a Catarina, a sua melhor
amiga desde a juventude, quase uma irmã, que a amparara e passara a cerimónia toda
a chorar copiosamente, dando largas ao choro que ela não se permitia soltar.
O cortejo até ao cemitério fora
impressionante pelo número de viaturas, entre colegas de trabalho, amigos,
familiares, alguns vindos de bem longe, e até meros conhecidos que não tinham
deixado passar essa oportunidade de lhe prestar uma última homenagem. Sim,
podia-se dizer que o seu João fora muito apreciado em vida e pelo que se via,
acarinhado nos seus últimos instantes.
Não havia dúvidas, ele teria realmente
adorado toda aquela pompa e aparato, extremamente extrovertido e muito dado,
sempre gostara de ser o centro das atenções e hoje era-o, certamente.
Talvez fosse por isso que se davam tão
bem, uma vez que ela era muito calada e tímida e nada lhe agradava mais do que
passar despercebida, era mesmo uma “espetadora inata”, como lhe chamava o
marido, preferia observar a participar. No caso deles a velha expressão de “os
opostos atraem-se” era certamente verdadeira.
Teria pois preferido algo mais modesto,
apenas meia dúzia de pessoas mais chegadas, onde não tivesse de se lembrar
constantemente de que sendo a viúva, tinha um papel central a desempenhar, mas ficara
de tal modo paralisada pelo choque que nada decidira e fora Catarina e a
família do marido que tudo tinham organizado, “como o João quereria”.
Quando se viu finalmente só em casa, tendo
convencido com alguma dificuldade família e amigos de que estava bem e só
precisava de descansar um pouco, pôde dar largas ao desespero pela perda do
marido de que nem se chegara a despedir como deve ser. Quando saíra de manhã
cedo naquele dia fatal para uma breve viagem de negócios, estava demasiado
sonolenta para mais do que um breve aceno de adeus, voltando imediatamente a
adormecer.
Como desejava agora que ele a tivesse
acordado para que tomassem um café juntos e o fosse depois acompanhar ao carro!
Ao maldito carro, a sua “crise de meia idade”, como ele dizia
meio a gozar, o causador de toda esta desgraça. Sim, fora excesso de velocidade
num dia chuvoso, mas se não tivesse trocado de carro uns meses antes não iria
certamente tão depressa e as consequências do despiste teriam sido menos graves.
Num carro desportivo como aquele, uma autêntica bomba, a tentação de se pôr à
prova era demasiado grande e acelerava-se mesmo sem dar por isso.
Nunca se sentira à vontade nele, mas também
nunca se atrevera a mostrar o seu desagrado, sempre que estava prestes a
sugerir uma nova troca por um modelo mais discreto e menos potente o ar de
miúdo satisfeito do marido impedia-a de abrir a boca. E o resultado estava
agora à vista. A sua única satisfação, se é que se lhe podia chamar isso, é que
nunca mais teria de o ver, fora diretamente para a sucata.
A caminho da cozinha para ir buscar um
copo de leite para levar para o quarto caso lhe desse a fome durante a noite,
uma vez que pouco ou nada comera desde a véspera, reparou que alguém,
possivelmente a irmã, recolhera o correio e tinha-o empilhado na mesinha da
entrada. Não lhe ia pegar, claro, quem pensa em correspondência numa ocasião
destas, ainda por cima a maior parte devia ser publicidade ou contas, mas de
repente reparou que o envelope de cima tinha a letra do João.
Estacou imediatamente, pegou-lhe por uma
das pontas, quase como se fosse uma bomba, e viu que era efetivamente dele e
que lhe estava endereçada. Que querido! Sabia como detestava e-mails e
enviava-lhe sempre cartas “a sério” durante as suas inúmeras ausências, às
vezes apenas meia dúzia de linhas sem nada de importante.
Mas esta devia ter sido enviada ainda
antes da sua partida, o acidente dera-se a menos de duas horas de casa e àquela
hora não haveria de onde enviar uma carta. Seriam possivelmente algumas
recomendações sobre assuntos a tratar na sua ausência, sabia bem que ela era
bastante esquecida e por isso deixava-lhe sempre listas muito completas com
tudo o que era necessário fazer.
Fosse como fosse, era a última carta que
receberia dele. Só de pensar nisso, desfez-se em lágrimas, as que não chorara
durante toda a cerimónia e também no enterro. E foi a soluçar que a levou para
o quarto, pousando-a na mesinha de cabeceira enquanto se despia e enfiava uma
antiga camisa do marido que usava sempre para dormir quando ele se ausentava.
Já na cama e um pouco mais calma, abriu
cuidadosamente o envelope, para não o estragar, retirou o maço de folhas que
continha, abriu-as sobre o lençol, enxugou as lágrimas para poder ver melhor e houve
uma frase inicial que lhe saltou imediatamente aos olhos:
“Minha querida, sei que nunca entenderás
porque te deixei e fui viver com a Catarina...”
Luísa Lopes
Photo by Sigmund on Unsplash
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