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terça-feira, 8 de junho de 2021

Aqui há gato...

“Não me viro, não me viro...”, repetia em surdina, sem se importar com o que pudessem pensar os transeuntes que se cruzavam com ela, muitos deles pessoas conhecidas. Só queria chegar à mercearia sem o ver, depois pensaria no drama do regresso. Mas com a porta já à vista, não resistiu, virou-se e... Ali estava o maldito gato que lhe infernizava a vida.

Podia ser um outro, gatos tigrados há muitos, sobretudo gatos de rua, mas sem saber bem porquê sentia que era o mesmo. E mais misteriosamente ainda, que a andava a seguir.

Sabia até exatamente quando tudo começara, fora na manhã seguinte àquela malfadada noite que se esforçava com unhas e dentes por não recordar. Só reparara nele porque ao sair de casa como de costume para ir às compras para o almoço tivera a sensação arrepiante de que estava a ser observada e na rua totalmente vazia só conseguia ver um gato muito bem sentado no passeio mesmo à sua frente e com os olhos fixos nela.

Era um gato de aspeto vulgaríssimo, sem nada que o tornasse notável, pelo menos para alguém como ela que nunca se interessara por felinos ou, até, por qualquer tipo de animal doméstico — sempre achara que não valiam o trabalho e sujeira que criavam. A única coisa que chamava a atenção era que o modo como a olhava, um olhar fixo, quase gélido, que a fizera arrepiar-se.

Mas com um puxar de orelhas mental retomou a serenidade e começou a caminhar em direção ao pequeno supermercado, ou antes, mercearia do bairro, reparando, sem reparar, que ele se erguera e começara a andar na mesma direção. E quando saiu da loja ali estava ele muito bem repimpado do outro lado da rua, como se estivesse à sua espera. E parecia ter mesmo estado porque se levantou de imediato, seguindo-a até casa.

A partir daí não conseguia pôr um pé fora de casa sem o avistar e sem ser seguida. Ia para onde ela ia, esperava à porta das lojas, enfim, tornara-se uma autêntica sombra. Até mesmo quando foi ao cemitério levar umas flores pelo aniversário da morte da mãe, mal desceu do autocarro no regresso ao bairro a primeira coisa que viu foi aquela malfadada criatura.

Sempre ouvira dizer que os gatos dormiam umas 18 horas por dia, pois bem, este devia pertencer a uma espécie desconhecida porque sempre que o via — e via-o inúmeras vezes por dia — estava sempre bem acordado.

Não conseguia explicar a sua reação a um mero animal que de ameaçador nada tinha, só sabia que sentia calafrios sempre que o via e que, pouco a pouco, a estranheza que sentira inicialmente se convertera em verdadeiro temor. E surgira-lhe a crença arreigada de que tudo isto estava relacionado com “o evento”, a tal noite que daria tudo para esquecer. É que se lembrara de ter ouvido dizer que a velha tinha um gato, o único ser a quem dedicava algum carinho, e tinha a certeza de que era ele que a seguia, sedento de vingança.

Ao fim de alguns dias sentia-se de tal modo acossada que até pensou ir ter com o gato e explicar-lhe que só o fizera por estar desesperada, ia perder a casa e na sua idade e com uma reforma de miséria, o que seria dela? E a velha bem a podia ter ajudado, se não fosse tão egoísta e sovina. Fora vê-la naquela noite apenas para lhe suplicar, mais uma vez, que a ajudasse a pagar a última prestação da quantia que o irmão lhe exigira a troco do velho andar que fora da mãe.

Devia estar certamente louca, quando o fizera e agora, a pensar explicar-se a um mero gato de rua. Também não admirava, mal conseguia sossegar, de noite quase não conseguia dormir, sempre com a imagem da maldita velha a encher-lhe os sonhos  — e de dia lá estava aquela criatura a relembrar-lhe tudo.

Ainda se fosse culpada! Mas vendo bem as coisas, não passara tudo de um acidente, um acidente infeliz para a velha, sim, mas apenas isso. Que culpa tinha ela se ao empurrá-la no ardor da discussão a malvada caíra desamparada, batendo com a cabeça na esquina da mesa e morrendo de imediato? O único crime que cometera fora revistar-lhe a casa à procura do dinheiro que todos sabiam que não confiava a bancos nem a ninguém. E que afinal não era tanto como imaginara, mas juntamente com algumas joias antigas, de que conseguira vender uma parte como tendo-as herdado da mãe, fora o suficiente para a manter no seu lar.

Pensando bem, até lhe fizera um favor. A fazer fé nos seus eternos queixumes, a velha sofria permanentemente de dores em tudo quanto era sítio e suspirava pela “fim deste vale de misérias” e pela “tranquilidade da morte”.

Fora isso mesmo que tivera, uma morte súbita e sem sofrimento. E ela conseguira a garantia de um resto de vida sem sobressaltos... se não fosse o maldito gato!

Entre insónias, pesadelos e terrores diurnos, não admira que uma manhã tenha atravessado a rua sem olhar, tendo morte instantânea ao ser colhida pelo autocarro que tantas vezes apanhara para ir ao cemitério.

Como único herdeiro legal, o irmão ficou com a casa e com todo o seu recheio, vendendo tudo ao desbarato exceto uns brincos e um anel que nunca vira à irmã mas que deduziu terem vindo da mãe, uma vez que esta, tendo ficado viúva muito cedo, deixara de usar joias.

E o gato? Bom, o gato voltou à sua rotina diária de bichano doméstico, tendo sido adotado por uma das vizinhas da velha. O seu único desgosto, fugaz, aliás, para o seu feitio felino, foi ter perdido a fonte do forte cheiro a “catnip” que emanava daquela mulher desde a noite em que a vira a remexer as gavetas da dona e a meter no bolso do casaco que usava sempre uma bolsinha bordada que continha uns restinhos daquele seu tão apreciado petisco.

Luísa Lopes

Foto de Luke Stackpoole, Unsplash


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