“Não
me viro, não me viro...”, repetia em surdina, sem se importar com o que
pudessem pensar os transeuntes que se cruzavam com ela, muitos deles pessoas
conhecidas. Só queria chegar à mercearia sem o ver, depois pensaria no drama do
regresso. Mas com a porta já à vista, não resistiu, virou-se e... Ali estava o
maldito gato que lhe infernizava a vida.
Podia
ser um outro, gatos tigrados há muitos, sobretudo gatos de rua, mas sem saber
bem porquê sentia que era o mesmo. E mais misteriosamente ainda, que a andava a
seguir.
Sabia
até exatamente quando tudo começara, fora na manhã seguinte àquela malfadada
noite que se esforçava com unhas e dentes por não recordar. Só reparara nele
porque ao sair de casa como de costume para ir às compras para o almoço tivera
a sensação arrepiante de que estava a ser observada e na rua totalmente vazia só
conseguia ver um gato muito bem sentado no passeio mesmo à sua frente e com os
olhos fixos nela.
Era
um gato de aspeto vulgaríssimo, sem nada que o tornasse notável, pelo menos
para alguém como ela que nunca se interessara por felinos ou, até, por qualquer
tipo de animal doméstico — sempre achara que não valiam o trabalho e sujeira
que criavam. A única coisa que chamava a atenção era que o modo como a olhava,
um olhar fixo, quase gélido, que a fizera arrepiar-se.
Mas
com um puxar de orelhas mental retomou a serenidade e começou a caminhar em
direção ao pequeno supermercado, ou antes, mercearia do bairro, reparando, sem
reparar, que ele se erguera e começara a andar na mesma direção. E quando saiu da
loja ali estava ele muito bem repimpado do outro lado da rua, como se estivesse
à sua espera. E parecia ter mesmo estado porque se levantou de imediato, seguindo-a
até casa.
A
partir daí não conseguia pôr um pé fora de casa sem o avistar e sem ser seguida.
Ia para onde ela ia, esperava à porta das lojas, enfim, tornara-se uma
autêntica sombra. Até mesmo quando foi ao cemitério levar umas flores pelo
aniversário da morte da mãe, mal desceu do autocarro no regresso ao bairro a
primeira coisa que viu foi aquela malfadada criatura.
Sempre
ouvira dizer que os gatos dormiam umas 18 horas por dia, pois bem, este devia
pertencer a uma espécie desconhecida porque sempre que o via — e via-o inúmeras
vezes por dia — estava sempre bem acordado.
Não
conseguia explicar a sua reação a um mero animal que de ameaçador nada tinha,
só sabia que sentia calafrios sempre que o via e que, pouco a pouco, a
estranheza que sentira inicialmente se convertera em verdadeiro temor. E surgira-lhe
a crença arreigada de que tudo isto estava relacionado com “o evento”, a tal
noite que daria tudo para esquecer. É que se lembrara de ter ouvido dizer que a
velha tinha um gato, o único ser a quem dedicava algum carinho, e tinha a
certeza de que era ele que a seguia, sedento de vingança.
Ao
fim de alguns dias sentia-se de tal modo acossada que até pensou ir ter com o
gato e explicar-lhe que só o fizera por estar desesperada, ia perder a casa e
na sua idade e com uma reforma de miséria, o que seria dela? E a velha bem a
podia ter ajudado, se não fosse tão egoísta e sovina. Fora vê-la naquela noite
apenas para lhe suplicar, mais uma vez, que a ajudasse a pagar a última
prestação da quantia que o irmão lhe exigira a troco do velho andar que fora da
mãe.
Devia
estar certamente louca, quando o fizera e agora, a pensar explicar-se a um mero
gato de rua. Também não admirava, mal conseguia sossegar, de noite quase não conseguia
dormir, sempre com a imagem da maldita velha a encher-lhe os sonhos — e de dia lá estava aquela criatura a
relembrar-lhe tudo.
Ainda
se fosse culpada! Mas vendo bem as coisas, não passara tudo de um acidente, um
acidente infeliz para a velha, sim, mas apenas isso. Que culpa tinha ela se ao
empurrá-la no ardor da discussão a malvada caíra desamparada, batendo com a
cabeça na esquina da mesa e morrendo de imediato? O único crime que cometera
fora revistar-lhe a casa à procura do dinheiro que todos sabiam que não confiava
a bancos nem a ninguém. E que afinal não era tanto como imaginara, mas
juntamente com algumas joias antigas, de que conseguira vender uma parte como
tendo-as herdado da mãe, fora o suficiente para a manter no seu lar.
Pensando
bem, até lhe fizera um favor. A fazer fé nos seus eternos queixumes, a velha sofria
permanentemente de dores em tudo quanto era sítio e suspirava pela “fim deste
vale de misérias” e pela “tranquilidade da morte”.
Fora
isso mesmo que tivera, uma morte súbita e sem sofrimento. E ela conseguira a
garantia de um resto de vida sem sobressaltos... se não fosse o maldito gato!
Entre
insónias, pesadelos e terrores diurnos, não admira que uma manhã tenha
atravessado a rua sem olhar, tendo morte instantânea ao ser colhida pelo
autocarro que tantas vezes apanhara para ir ao cemitério.
Como
único herdeiro legal, o irmão ficou com a casa e com todo o seu recheio,
vendendo tudo ao desbarato exceto uns brincos e um anel que nunca vira à irmã
mas que deduziu terem vindo da mãe, uma vez que esta, tendo ficado viúva muito
cedo, deixara de usar joias.
E o gato? Bom, o gato voltou à sua rotina diária de bichano doméstico, tendo sido adotado por uma das vizinhas da velha. O seu único desgosto, fugaz, aliás, para o seu feitio felino, foi ter perdido a fonte do forte cheiro a “catnip” que emanava daquela mulher desde a noite em que a vira a remexer as gavetas da dona e a meter no bolso do casaco que usava sempre uma bolsinha bordada que continha uns restinhos daquele seu tão apreciado petisco.
Luísa Lopes
Foto de Luke Stackpoole, Unsplash
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