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sábado, 8 de maio de 2021

Voltar é Possível


 

Nos poucos momentos de lucidez que a muita medicamentação lhe deixava o Sr. Ramos entretinha-se a recordar a sua bem longa e movimentada vida. Também pouco mais poderia fazer, a fraca vista já não lhe permitia ler, nem sequer os títulos do jornal, e o som da televisão dava-lhe dores de cabeça.

O quarto era confortável e o pessoal muito profissional e atencioso, a filha não se poupara a esforços e conseguira pô-lo num dos melhores centros de cuidados paliativos do país, mas para todos os efeitos tratava-se meramente de uma antecâmara da morte.

Não que a ideia o incomodasse, vivera intensamente os muitos anos que lhe tinham sido concedidos, sempre com boa saúde até ao único — e quase fatal — ataque uns meses antes. E fora realmente uma bela vida!

Começara a trabalhar muito novo, eram outros tempos e esperava-se que todos contribuíssem para o sustento da família, nem sempre se atendendo à idade ou forças de que dispunham. Mas isso não o impedira de ser bom aluno na primária, talvez por ver nos estudos um escape ao esgotante trabalho físico que o esperava se não arranjasse uma profissão. Esperto como era, conseguiu convencer o mecânico da vila a dar-lhe uns pequenos biscates, que se converteram em emprego como ajudante mal teve de deixar a escola com uns meros nove anos — eram mesmo outros tempos.

Mas curioso como era, não se limitou a absorver o pouco que o Sr. Manuel lhe podia ensinar. Nas poucas horas vagas que o emprego e uns biscates que fazia lhe deixavam deambulava pela vila e metia conversa com quem calhava, sempre com perguntas e a querer saber mais sobre tudo. Tornou-se para muitos O Miúdo e quase competiam para ver quem lhe poderia ensinar algo.

Chamado para a tropa, os seus conhecimentos de mecânica tornaram-se úteis e permitiram-lhe um serviço militar diferente e em que muito aprendeu. Podia-se dizer que nenhuma máquina tinha segredos para si, se não sabia não descansava enquanto não descobria como a reparar.

As conversas que tinha com outros recrutas mais educados despertaram-lhe a curiosidade pelo mundo, por ver que mais haveria para lá da sua pequena vila e da vida fechada que ali se levava. Por isso, uma vez acabada a tropa e com uma certificação de mecânico, fez-se à estrada, primeiro a capital, depois outros países cada vez mais longínquos. Descobriu que um mecânico do seu género, tipo faz-tudo, tinha sempre um modo de ganhar a vida em muitas terras mundo fora. E viajou imenso, parando uns meses aqui e ali para ganhar uns tostões que lhe permitissem continuar a sua deambulação.

Conheceu a que viria a ser sua esposa numa vilória como a sua, mas num país distante. Sem bem saber como, convenceu-a a casar-se com ele e a segui-lo na sua vida nómada. Mas quando os dois filhos chegaram à idade escolar, decidira regressar ao seu país natal, não à sua terra mas a uma cidade maior, com mais recursos que lhes permitissem vir a ter uma vida melhor.

Apesar da pena de não ter voltado a viajar — as poupanças que fazia iam todas para os estudos dos filhos e mais tarde para a doença da mulher — não se arrependia de ter tomado essa decisão. Tinham sido bons anos, com dificuldades, claro, mas também com muitos momentos bons.

A eletrónica estragou-lhe de certo modo a vida, mas havia sempre quem tivesse máquinas antigas e não lhe faltava trabalho suficiente para viver e pôr até algum de lado, sobretudo com os filhos já crescidos e a trabalharem.

Sim, tivera certamente uma boa vida, cheia de eventos interessantes e de coisas fascinantes.

Se alguma lástima tinha era nunca ter voltado à terra. Pensara nisso várias vezes, ao longo dos anos, uma vez estivera até perto mas as “modernices” que via na televisão quando mostravam aquela região assustaram-no e desistira da ideia. Queria rever a vila, sim, mas a “sua” vila, aquela onde fora simplesmente o Quim, o Miúdo, não uma versão diferente, melhor, sem dúvida, mas que nada lhe diria.

Os filhos concordavam plenamente com isso e nunca hesitavam em contar-lhe histórias de pais ou tios de amigos que tinham ido à terra após uma longa ausência sofrendo uma tremenda desilusão com as mudanças que tinham encontrado e que a tornavam irreconhecível.

Pensando bem, era melhor assim, tinha as suas recordações, eram suficientes para o ocuparem nas poucas horas que passava acordado ali naquela cama.

E eram cada vez menos, quando fora internado com um ataque cardíaco tinham descoberto que sofria de um cancro feroz e de progressão rápida, por isso as doses de medicamentação iam aumentando e pouco tempo passava acordado.

Mesmo assim, sendo quem era, lutava para manter a consciência o mais tempo possível para ir recordando com os máximos detalhes a sua vida e, ultimamente, quase que exclusivamente a sua terra e as pessoas com quem a partilhara.

Até que um dia...

Sentira-se subitamente mais lúcido do que nos últimos anos. E com uma energia que há muito não tinha. Olhou à volta e viu-se numa estrada, apesar de não se recordar de como lá fora parar. Mas não hesitou, começou a caminhar em passadas largas, a caminho nem ele sabia de quê.

Ao fim de uns minutos, e após uma curva apertada que lhe pareceu vagamente familiar, ei-la à sua frente, a sua saudosa vila. Nem hesitou, acelerou o passo, ansioso por voltar a casa. Sim, a casa, embora a tivesse deixado há décadas. Nem lhe passou pela cabeça que podia não existir, que mesmo que ainda ali estivesse tudo seria diferente. Não, tinha a certeza de que ali estaria, tal como a recordava.

Entrou na vila e as ruas eram-lhe tão familiares como o tinham sido em miúdo. Viu a pequena mercearia, mais loja vende tudo, exatamente como era quando ajudava a D. Teresa com as encomendas. E ali estava ela, baixa, redondinha e de idade indefinida, tal como a conhecera em miúdo.

Mais adiante, o largo da vila, com a igreja a um dos lados e os mesmos velhotes, seus velhos conhecidos e amigos, no banco do costume a discutirem as mesmas coisas de sempre.

Sentindo-se leve como uma pena levada numa suave aragem, tomou por uma das ruas secundárias a caminho da sua casa, no outro extremo da vila, numa zona mais rural que urbana. Ansiava por vê-la e foi quase numa correria que fez as últimas centenas de metros.

E ali estava ela, exatamente como a recordava, com o velho telhado cheio de musgo, o grande limoeiro junto à porta da frente, o portão aberto e de tal modo enferrujado que seria impossível fechá-lo mesmo que quisessem.

Entrou e contornou a casa a caminho da porta das traseiras, o acesso usado por todos, família, vizinhos ou até visitas. Sim, a porta da frente e a sala eram apenas para convidados de honra, se alguma vez aparecessem, e para o senhor padre na manhã de Páscoa quando aparecia com o Compasso.

Sem se preocupar em bater e sem hesitar, entrou para a escuridão da cozinha, sabendo exatamente o que iria encontrar: a mãe sentada à velha mesa, ocupada em descascar coisas para a refeição, o pai, no seu velho cadeirão, a dormitar enquanto esperava pelo jantar, o irmão do meio ocupado com os deveres de casa e o mais novo a brincar com o carro de corda que herdara dos irmãos e que, apesar de baratucho e em bastante mau estado, era o seu enlevo.

Suspirando de alívio, Quim dirigiu-se para o seu poiso usual, um banco corrido por baixo da pequena janela onde se sentava a ler os livros emprestados pela senhora professora: estava em casa.

De manhã, nem o pessoal de serviço nem a filha, chamada à pressa, conseguiram entender o ar sereno, feliz até, com que o Sr. Ramos falecera durante a noite.

Luísa Lopes

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