Nos
poucos momentos de lucidez que a muita medicamentação lhe deixava o Sr. Ramos entretinha-se
a recordar a sua bem longa e movimentada vida. Também pouco mais poderia fazer,
a fraca vista já não lhe permitia ler, nem sequer os títulos do jornal, e o som
da televisão dava-lhe dores de cabeça.
O
quarto era confortável e o pessoal muito profissional e atencioso, a filha não
se poupara a esforços e conseguira pô-lo num dos melhores centros de cuidados
paliativos do país, mas para todos os efeitos tratava-se meramente de uma
antecâmara da morte.
Não que
a ideia o incomodasse, vivera intensamente os muitos anos que lhe tinham sido
concedidos, sempre com boa saúde até ao único — e quase fatal — ataque uns
meses antes. E fora realmente uma bela vida!
Começara
a trabalhar muito novo, eram outros tempos e esperava-se que todos contribuíssem
para o sustento da família, nem sempre se atendendo à idade ou forças de que dispunham.
Mas isso não o impedira de ser bom aluno na primária, talvez por ver nos estudos
um escape ao esgotante trabalho físico que o esperava se não arranjasse uma profissão.
Esperto como era, conseguiu convencer o mecânico da vila a dar-lhe uns pequenos
biscates, que se converteram em emprego como ajudante mal teve de deixar a
escola com uns meros nove anos — eram mesmo outros tempos.
Mas curioso
como era, não se limitou a absorver o pouco que o Sr. Manuel lhe podia ensinar.
Nas poucas horas vagas que o emprego e uns biscates que fazia lhe deixavam deambulava
pela vila e metia conversa com quem calhava, sempre com perguntas e a querer
saber mais sobre tudo. Tornou-se para muitos O Miúdo e quase competiam para ver
quem lhe poderia ensinar algo.
Chamado
para a tropa, os seus conhecimentos de mecânica tornaram-se úteis e
permitiram-lhe um serviço militar diferente e em que muito aprendeu. Podia-se
dizer que nenhuma máquina tinha segredos para si, se não sabia não descansava
enquanto não descobria como a reparar.
As conversas
que tinha com outros recrutas mais educados despertaram-lhe a curiosidade pelo
mundo, por ver que mais haveria para lá da sua pequena vila e da vida fechada
que ali se levava. Por isso, uma vez acabada a tropa e com uma certificação de
mecânico, fez-se à estrada, primeiro a capital, depois outros países cada vez
mais longínquos. Descobriu que um mecânico do seu género, tipo faz-tudo, tinha
sempre um modo de ganhar a vida em muitas terras mundo fora. E viajou imenso,
parando uns meses aqui e ali para ganhar uns tostões que lhe permitissem
continuar a sua deambulação.
Conheceu
a que viria a ser sua esposa numa vilória como a sua, mas num país distante.
Sem bem saber como, convenceu-a a casar-se com ele e a segui-lo na sua vida
nómada. Mas quando os dois filhos chegaram à idade escolar, decidira regressar
ao seu país natal, não à sua terra mas a uma cidade maior, com mais recursos
que lhes permitissem vir a ter uma vida melhor.
Apesar
da pena de não ter voltado a viajar — as poupanças que fazia iam todas para os
estudos dos filhos e mais tarde para a doença da mulher — não se arrependia de
ter tomado essa decisão. Tinham sido bons anos, com dificuldades, claro, mas também
com muitos momentos bons.
A
eletrónica estragou-lhe de certo modo a vida, mas havia sempre quem tivesse
máquinas antigas e não lhe faltava trabalho suficiente para viver e pôr até
algum de lado, sobretudo com os filhos já crescidos e a trabalharem.
Sim,
tivera certamente uma boa vida, cheia de eventos interessantes e de coisas
fascinantes.
Se
alguma lástima tinha era nunca ter voltado à terra. Pensara nisso várias vezes,
ao longo dos anos, uma vez estivera até perto mas as “modernices” que via na
televisão quando mostravam aquela região assustaram-no e desistira da ideia.
Queria rever a vila, sim, mas a “sua” vila, aquela onde fora simplesmente o
Quim, o Miúdo, não uma versão diferente, melhor, sem dúvida, mas que nada lhe
diria.
Os
filhos concordavam plenamente com isso e nunca hesitavam em contar-lhe histórias
de pais ou tios de amigos que tinham ido à terra após uma longa ausência
sofrendo uma tremenda desilusão com as mudanças que tinham encontrado e que a
tornavam irreconhecível.
Pensando
bem, era melhor assim, tinha as suas recordações, eram suficientes para o
ocuparem nas poucas horas que passava acordado ali naquela cama.
E
eram cada vez menos, quando fora internado com um ataque cardíaco tinham
descoberto que sofria de um cancro feroz e de progressão rápida, por isso as
doses de medicamentação iam aumentando e pouco tempo passava acordado.
Mesmo
assim, sendo quem era, lutava para manter a consciência o mais tempo possível
para ir recordando com os máximos detalhes a sua vida e, ultimamente, quase que
exclusivamente a sua terra e as pessoas com quem a partilhara.
Até
que um dia...
Sentira-se
subitamente mais lúcido do que nos últimos anos. E com uma energia que há muito
não tinha. Olhou à volta e viu-se numa estrada, apesar de não se recordar de
como lá fora parar. Mas não hesitou, começou a caminhar em passadas largas, a
caminho nem ele sabia de quê.
Ao
fim de uns minutos, e após uma curva apertada que lhe pareceu vagamente
familiar, ei-la à sua frente, a sua saudosa vila. Nem hesitou, acelerou o passo,
ansioso por voltar a casa. Sim, a casa, embora a tivesse deixado há décadas.
Nem lhe passou pela cabeça que podia não existir, que mesmo que ainda ali
estivesse tudo seria diferente. Não, tinha a certeza de que ali estaria, tal
como a recordava.
Entrou
na vila e as ruas eram-lhe tão familiares como o tinham sido em miúdo. Viu a
pequena mercearia, mais loja vende tudo, exatamente como era quando ajudava a
D. Teresa com as encomendas. E ali estava ela, baixa, redondinha e de idade
indefinida, tal como a conhecera em miúdo.
Mais
adiante, o largo da vila, com a igreja a um dos lados e os mesmos velhotes,
seus velhos conhecidos e amigos, no banco do costume a discutirem as mesmas
coisas de sempre.
Sentindo-se
leve como uma pena levada numa suave aragem, tomou por uma das ruas secundárias
a caminho da sua casa, no outro extremo da vila, numa zona mais rural que urbana.
Ansiava por vê-la e foi quase numa correria que fez as últimas centenas de
metros.
E
ali estava ela, exatamente como a recordava, com o velho telhado cheio de
musgo, o grande limoeiro junto à porta da frente, o portão aberto e de tal modo
enferrujado que seria impossível fechá-lo mesmo que quisessem.
Entrou
e contornou a casa a caminho da porta das traseiras, o acesso usado por todos,
família, vizinhos ou até visitas. Sim, a porta da frente e a sala eram apenas
para convidados de honra, se alguma vez aparecessem, e para o senhor padre na
manhã de Páscoa quando aparecia com o Compasso.
Sem
se preocupar em bater e sem hesitar, entrou para a escuridão da cozinha,
sabendo exatamente o que iria encontrar: a mãe sentada à velha mesa, ocupada em
descascar coisas para a refeição, o pai, no seu velho cadeirão, a dormitar
enquanto esperava pelo jantar, o irmão do meio ocupado com os deveres de casa e
o mais novo a brincar com o carro de corda que herdara dos irmãos e que, apesar
de baratucho e em bastante mau estado, era o seu enlevo.
Suspirando
de alívio, Quim dirigiu-se para o seu poiso usual, um banco corrido por baixo
da pequena janela onde se sentava a ler os livros emprestados pela senhora
professora: estava em casa.
De
manhã, nem o pessoal de serviço nem a filha, chamada à pressa, conseguiram
entender o ar sereno, feliz até, com que o Sr. Ramos falecera durante a noite.
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