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sexta-feira, 28 de maio de 2021

Suspenso


— Vai-te depressa, é o meu marido!

A frase chegou-me ao cérebro em uníssono com o som característico de uma chave a ser introduzida numa fechadura.

Saltei na cama, atordoado e fiquei sentado a olhá-la, um pouco incrédulo.

Ela fitou-me com os seus olhos azuis. Duas pérolas refulgentes na obra de arte que era o rosto emoldurado pelo cabelo encaracolado escuro.

Por uns instantes, uns segundos apenas, gelamos, um frente ao outro, soerguidos na cama onde há tão pouco tempo havíamos dado largas à paixão. Os seus peitos alvos e fartos, de mamilos quase invisíveis de tão rosados, subiam e desciam nervosamente, acompanhando o respirar entrecortado.

— Depressa! — O tom sussurrado e suplicante, trouxe-me de volta à realidade em simultâneo com o ruído de passos pesados no corredor.

— Disseste-me que ele não vinha hoje! — Protestei, recolhendo as roupas de cima da poltrona que havia aos pés da cama. Dei graças pelos meus hábitos de, mesmo enlouquecido pelo desejo, amontoar a roupa toda no mesmo sítio.

— Deve ter trocado o serviço, que queres que te faça? — O sussurro irritado insistia na urgência.

— Não seria melhor acabar com isto de uma vez? — Engoli em seco.

— Estás cansado de viver? — A retórica foi suficientemente elucidativa.

Os passos chegaram junto à porta do quarto e o manípulo rodou devagar. Escondi-me na casa de banho, onde sabia que existia uma saída para o corredor e vesti-me rapidamente, no escuro, enquanto espreitava pela frincha da porta. Na penumbra do quarto, consegui divisar o marido; cerca de um metro e noventa de homem, cabelo cortado à escovinha, envergando o uniforme da PSP e ainda com a arma e o cassetete suspensos da cintura.

— Que porra de situação. — Lamentei-me calçando o segundo sapato e observando-o a espreitar a jovem esposa, que se fingia adormecida.

Esgueirei-me para o corredor às escuras e em passos largos e silenciosos, encaminhei-me para a porta de saída do apartamento. Uma manada de cavalos enlouquecidos corria desenfreadamente no meu peito, enquanto tentava, sem sucesso, abrir a porta que fora fechada com a chave.

Conseguia escutar murmúrios do quarto. Devia estar a tentar “acordá-la” para fazer aquilo que tinha feito comigo nas últimas horas… Porque diabos haveria de voltar tão cedo?

Em vão, apalpei no topo da credencia pelas chaves que me permitiriam sair daquela situação…

Os murmúrios terminaram de repente e o corredor iluminou-se com a luz proveniente da casa de banho que eu acabara de abandonar.

Corri para sala e olhei em volta; aquela divisão que conhecia tão bem, onde cada maple e cadeira tinha uma recordação agradável, em busca de um sítio para me esconder. A única coisa que me pareceu mais adequada foi o sofá; com um salto acrobático, consegui literalmente mergulhar para a parte traseira, comprimindo-me o mais que pude entre a parede e as costas.

O som de passos a entrar na sala… a televisão começou a funcionar… o ruído do cinturão a ser pousado na mesa de apoio e um peso brutal caiu sobre o sofá, esmagando-me ainda mais. Quase não consegui suster um gemido.

Deixei-me ficar, naquela posição tremendamente incómoda, enquanto ouvia a sessão de zapping a decorrer. Ao fim do que me pareceu uma eternidade, levantou-se novamente, dando descanso às minhas dilaceradas costelas e ouvi os passos que se dirigiam à cozinha.

Aproveitei a oportunidade e corri para a varanda, cuja porta abri muito devagar e passei para o exterior… não consegui tornar a encostar a corrediça, que me pareceu ficar presa em qualquer coisa.

Corria uma aragem fria do fim do verão… o céu sem estrelas era providencial e espreitei para a rua… quatro andares abaixo. Lembrei-me naquela altura que, de futuro, deveria incluir, como requisitos na minha lista de escolhas femininas, aquelas que vivessem no rés-do-chão, vá lá, no máximo primeiro andar… e que os maridos não fossem polícias, ou qualquer tipo de agente que incluísse armas.

Eu estava a ficar gelado rapidamente. Na sala, o homem retomara o zapping e de repente, olhou na minha direção, para a porta mal fechada, de onde devia estar a sentir corrente de ar. Ergueu-se e começou a experimentar a corrediça para verificar porque encravava, vi a sua perna sair para a varanda e era óbvio que teria de passar à próxima e ainda mais assustadora tática de esconderijo: debrucei-me sobre a balaustrada e fiquei suspenso no vazio, agarrado aos ferros.

O coração parecia querer saltar-me pela boca. Sentia o corpo todo tremer descontroladamente, sabendo que não aguentaria muito tempo assim. Abaixo de mim, ligeiramente desalinhada de uma eventual trajetória descendente, via a varanda do terceiro piso… conseguira saltar para ali? E depois para a seguinte? Dei graças por não haver ninguém na rua.

Escutei o ruído do isqueiro e a longa baforada que se seguiu… as mãos começavam a doer… se eu o enfrentasse, ele contentar-se-ia com uns socos ou… o mais certo era atirar-me da varanda ou dar-me um tiro… choraminguei silenciosamente a minha estupidez por me ter arrastado para aquela situação.

Estava a achar que não aguentava muito mais, quando vi o morrão do cigarro a voar para a rua, numa trajetória que me pareceu eterna, até ressaltar em pequenas faúlhas no asfalto. A porta da varanda fechou-se.

Tentei regressar à placa salvadora, mas os meus braços não tinham força para erguer o peso do corpo. Com os pés, tateei freneticamente em busca de algo que me apoiasse um pouco e facilitasse a tarefa. Os dedos estavam a fraquejar e iriam falhar a todo o momento. Olhei de novo a varanda abaixo de mim. Tinha de ser! Baloucei-me e larguei os ferros, lançando-me no vazio. Falhei a balaustrada abaixo de mim por uns milímetros e com os braços agitando freneticamente numa vã tentativa de  me agarrar, entrei numa queda silenciosa e interminável.

Saltei na cama, sufocado e encharcado em suor.



Manuel Amaro Mendonça

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