Nas lonjuras do ginasial, me havia um professor de Ciências de sobrenome Lins,
cujo nome não me apraz lembrar, talvez José, João, Juvenal, Jacinto, Jonas,
Josué ou Jagúncio, este por conta da cachola, dado ao seu jeito baiano de maus
bofes que não escondia parecer. Diziam que era médico, daí o “doutor” no lugar
de "professor", como careciam os demais professores de serem chamados. Dr. Lins,
como disse, era baiano, mas não tinha cor morena do baiano, nem simpatia de baiano,
nem calmaria de baiano. Dentro de um terno de linho branco e largo, enfeitado por
uma gravatinha borboleta, havia um nervosinho, magrinho, bigodinho de Amigo da Onça,
testa longa que se encerrava num chumaço grudado à brilhantina, separando as ditas
entradas tal como o já citado Amigo da Onça. Cismava comigo. Ao me curvar aos sapatos
para buscar o lápis que havia caído, interrompeu a aula para me mandar “coçar minhas
pulguinhas” em pé no canto do quadro negro até que a aula se fosse. E complementou:
“Aquiete-se, Zé Bostengo. Estou de olho em você.” Baixei a cabeça a fugir da caçoada
geral, um tanto intrigado sobre que diabo de pulgas havia ali por perto. Nem cachorro
em casa tinha. Nunca entendi. Outra ocasião, encerrou o Dr. Lins aula inteira sobre o
sistema solar, advertindo que quem espiasse o sol cego estaria para o resto da vida.
Não mais cores, não mais formas, não mais a cara da minha mãe. Ia para o colégio cedo,
dando bom dia às pedrinhas da rua, onde ali não haveria risco de encarar o sol.
E assim foi. Por tempo suficiente para respirar coragem e ser o primeiro a abordar
Dr. Lins logo que botou pé na sala. Desembestei. “Dr. Lins, o senhor disse que olhar o
sol fica cego. Como os cientistas estudam o sol?”. “Mas que inconveniente esse Zé Bostengo!
Mal cheguei já vem com perguntas? Vai se sentar e se aquiete. Estou de olho em você”.
Não entendi. Nem nunca conheci resposta alguma da parte dele.
Um dia surgiu pela porta carregando um embrulho em jornal desgrenhado. Parecia pesado,
tanto que ao jogar sobre a mesa, esparramou de sangue os arredores. Era um coração de boi, já
com odores de carniça. Chamou os alunos em volta e danou a enfiar os dedos em aurículas,
ventrículos, veias cavas, pulmonares, aorta e gorduras adjacentes. Não neguei minha expressão.
“Tá com nojinho, Zé Bostengo? Atenção que isso cai na prova. Tô de olho em você”. O professor
dito doutor, sacou do bolso um lenço encardido de sangue, fez que limpou dedos, sabugos e mãos,
e me atirou no colo a víscera quase putrificada, me ordenando que a jogasse no terreno baldio
atrás do pátio. E atravessei a escola com o cadáver na mão, espantando as pessoas de bem e
bom nariz, criando motivos para odiar o colégio tal como a vida.
Maria Eugênia me emparelhava na carteira escolar e na timidez. Roía unha e o lápis na ponta
que não escrevia. Dr. Lins se arregalou em fúria. “Menina Eugênia. O lápis que pões na boca
é o mesmo que antes repousava sobre o tampo da carteira, que antes recebia contato com sua
pasta de livros, que antes fora apoiada no chão do bonde que aqui a trouxe, chão este que
antes de a senhorita assentar, recebeu a cusparada de um tísico desenganado. Donde se conclui
que o bacilo da tuberculose foi do chão à tua pasta, da tua pasta ao tampo da mesa, onde teu
lápis repousou antes de ir à sua boca. Portanto, menina Eugênia, a senhorita está degustando
os resíduos salivares de um tuberculoso.” Maria Eugênia brotou lágrimas grossas. E eu, de
caso pensado e sanha de vingança, esguichei meu café da manhã composto de Toddy e pão com
manteiga no sapato bicolor do Dr. Lins, que se fez um sapo em marcha a ré, a se esquivar do jato
imparável, aos gritos de “Dona Dayse! Acode aqui!”. Deu-se o fuzuê. A inspetora de nome Dayse,
cujas línguas boas e más diziam se deixar examinar às noites assíduas nua no consultório do Dr.Lins,
prestimosa aos clamores do professor doutor, cuidou de aparecer com dois serventes, vassouras, rodos
e panos de chão contra os efeitos do suco gástrico e complementos derramados. A função contagiou
outros alunos, que não deram conta de resistir às ânsias, a sala virou convés de navio mar adentro em
ondas revoltas. Naquele dia de enjoativa memória, as aulas foram suspensas, tanto quanto eu por oito
dias, segundo comunicado do Grão Bedel a meu pai, convocado às pressas a comparecer para ouvir a
sentença e me retirar do colégio, sob o olhar do Dr.Lins, empertigado com o pé direito envolto num
saco plástico. “Aquiete-se, Zé Bostengo. Estou de olho em você.” Meu pai não gostou. Peitou o
professor, apertou-lhe o pescoço, mal ajambrou a borboleta, a ponto de o mestre ajoelhar e miar.
Me trocaram de escola. Fui parar no Liceu, mas deixei laços maus e laços bons naquele ginásio do
baiano doido.
Tanto se passou, tanto se viveu, tantas pessoas partiram, tantas chegaram, tantas se multiplicaram
por todos os lados. Não há noite mal dormida que não sonhe vez por outra com os olhos vigias do
Dr. Lins e suas mãos sujas de mortos corações. No início acordava suado, mas agora burro velho,
acostumei a achar graça, dada tanta análise, maravilha curativa dos males da alma.
Hoje estou numa praia na Bahia, que traz seu sotaque mais do que aparência. Ao meu lado,
Maria Eugênia, parelha de carteira, timidez e vida. Em volta de nós, o tempo infinito do amor,
a brisa que cochicha mansa, calor que aquece memória, cheiro que cheira bem viver.
Não há saudade doída que aperreie, nem de coisa que não se fez. Celebramos coqueiros perfilados,
o branco e o azul sem fins, caramanchões acolhedores, quiosques
de bem querer, baianos no ir e vir em ondas, oferecendo trecos, cerveja, simpatia e acarajé.
Olho Maria Eugenia, contemplo suas rugas feliz. No ímpeto de um beijo, um carinho, um cheiro,
um roçar de pele gostoso, vem de sua voz a lembrança apinhada de ternura:
“Se aquieta, Zé Bostengo. Estou de olho em você.”.
E veio uma gargalhada estrondosa, um riso gostoso que só na Bahia tem.
4 comentários:
Gostei de ler. Muito pormenor antigo, muita suposta memória. Um final prazeroso em relação íntima com o anterior e o antigo.
Obrigado, Joaquim. Me honram suas palavras.
Uma pequena obra-prima, José Guilherme!
Uma pequena obra-prima, José Guilherme!
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