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sábado, 20 de fevereiro de 2021

OLHARES



Nas lonjuras do ginasial, me havia um professor de Ciências de sobrenome Lins, 

cujo nome não me apraz lembrar, talvez José, João, Juvenal, Jacinto, Jonas, 

Josué ou Jagúncio, este por conta da cachola, dado ao seu jeito baiano de maus 

bofes que não escondia parecer. Diziam que era médico, daí o “doutor” no lugar 

de "professor", como careciam os demais professores de serem chamados. Dr. Lins, 

como disse, era baiano, mas não tinha cor morena do baiano, nem simpatia de baiano, 

nem calmaria de baiano. Dentro de um terno de linho branco e largo, enfeitado por 

uma gravatinha borboleta, havia um nervosinho, magrinho, bigodinho de Amigo da Onça, 

testa longa que se encerrava num chumaço grudado à brilhantina, separando as ditas 

entradas tal como o já citado Amigo da Onça. Cismava comigo. Ao me curvar aos sapatos 

para buscar o lápis que havia caído, interrompeu a aula para me mandar “coçar minhas 

pulguinhas” em pé no canto do quadro negro até que a aula se fosse. E complementou: 

“Aquiete-se, Zé Bostengo. Estou de olho em você.” Baixei a cabeça a fugir da caçoada 

geral, um tanto intrigado sobre que diabo de pulgas havia ali por perto. Nem cachorro 

em casa tinha. Nunca entendi. Outra ocasião, encerrou o Dr. Lins aula inteira sobre o 

sistema solar, advertindo que quem espiasse o sol cego estaria para o resto da vida. 

Não mais cores, não mais formas, não mais a cara da minha mãe. Ia para o colégio cedo, 

dando bom dia às pedrinhas da rua, onde ali não haveria risco de encarar o sol. 

E assim foi. Por tempo suficiente para respirar coragem e ser o primeiro a abordar 

Dr. Lins logo que botou pé na sala. Desembestei. “Dr. Lins, o senhor disse que olhar o 

sol fica cego. Como os cientistas estudam o sol?”. “Mas que inconveniente esse Zé Bostengo! 

Mal cheguei já vem com perguntas? Vai se sentar e se aquiete. Estou de olho em você”. 

Não entendi. Nem nunca conheci resposta alguma da parte dele.  

Um dia surgiu pela porta carregando um embrulho em jornal desgrenhado. Parecia pesado, 

tanto que ao jogar sobre a mesa, esparramou de sangue os arredores. Era um coração de boi, já

com odores de carniça. Chamou os alunos em volta e danou a enfiar os dedos em aurículas, 

ventrículos, veias cavas, pulmonares, aorta e gorduras adjacentes. Não neguei minha expressão. 

“Tá com nojinho, Zé Bostengo? Atenção que isso cai na prova. Tô de olho em você”. O professor 

dito doutor, sacou do bolso um lenço encardido de sangue, fez que limpou dedos, sabugos e mãos, 

e me atirou no colo a víscera quase putrificada, me ordenando que a jogasse no terreno baldio 

atrás do pátio. E atravessei a escola com o cadáver na mão, espantando as pessoas de bem e 

bom nariz, criando motivos para odiar o colégio tal como a vida.

Maria Eugênia me emparelhava na carteira escolar e na timidez. Roía unha e o lápis na ponta 

que não escrevia. Dr. Lins se arregalou em fúria. “Menina Eugênia. O lápis que pões na boca 

é o mesmo que antes repousava sobre o tampo da carteira, que antes recebia contato com sua 

pasta de livros, que antes fora apoiada no chão do bonde que aqui a trouxe, chão este que 

antes de a senhorita assentar, recebeu a cusparada de um tísico desenganado. Donde se conclui 

que o bacilo da tuberculose foi do chão à tua pasta, da tua pasta ao tampo da mesa, onde teu 

lápis repousou antes de ir à sua boca. Portanto, menina Eugênia, a senhorita está degustando 

os resíduos salivares de um tuberculoso.” Maria Eugênia brotou lágrimas grossas. E eu, de 

caso pensado e sanha de vingança, esguichei meu café da manhã composto de Toddy e pão com 

manteiga  no sapato bicolor do Dr. Lins, que se fez um sapo em marcha a ré, a se esquivar do jato 

imparável, aos gritos de “Dona Dayse! Acode aqui!”. Deu-se o fuzuê. A inspetora de nome Dayse, 

cujas línguas boas e más diziam se deixar examinar às noites assíduas nua no consultório do Dr.Lins, 

prestimosa aos clamores do professor doutor, cuidou de aparecer com dois serventes, vassouras, rodos 

e panos de chão contra os efeitos do suco gástrico e complementos derramados. A função contagiou 

outros alunos, que não deram conta de resistir às ânsias, a sala virou convés de navio mar adentro em 

ondas revoltas. Naquele dia de enjoativa memória, as aulas foram suspensas, tanto quanto eu por oito 

dias, segundo comunicado do Grão Bedel a meu pai, convocado às pressas a comparecer para ouvir a 

sentença e me retirar do colégio, sob o olhar do Dr.Lins, empertigado com o pé direito envolto num 

saco plástico. “Aquiete-se, Zé Bostengo. Estou de olho em você.” Meu pai não gostou. Peitou o 

professor, apertou-lhe o pescoço, mal ajambrou a borboleta, a ponto de o mestre ajoelhar e miar. 

Me trocaram de escola. Fui parar no Liceu, mas deixei laços maus e laços bons naquele ginásio do 

baiano doido.

Tanto se passou, tanto se viveu, tantas pessoas partiram, tantas chegaram, tantas se multiplicaram 

por todos os lados. Não há noite mal dormida que não sonhe vez por outra com os olhos vigias do

Dr. Lins e suas mãos sujas de mortos corações. No início acordava suado, mas agora burro velho, 

acostumei a achar graça, dada tanta análise, maravilha curativa dos males da alma. 

Hoje estou numa praia na Bahia, que traz seu sotaque mais do que aparência. Ao meu lado, 

Maria Eugênia, parelha de carteira, timidez e vida. Em volta de nós, o tempo infinito do amor, 

a brisa que cochicha mansa, calor que aquece memória, cheiro que cheira bem viver. 

Não há saudade doída que aperreie, nem de coisa que não se fez. Celebramos coqueiros perfilados, 

o branco e o azul sem fins, caramanchões acolhedores, quiosques 

de bem querer, baianos no ir e vir em ondas, oferecendo trecos, cerveja, simpatia e acarajé. 

Olho Maria Eugenia, contemplo suas rugas feliz. No ímpeto de um beijo, um carinho, um cheiro, 

um roçar de pele gostoso, vem de sua voz a lembrança apinhada de ternura: 

“Se aquieta, Zé Bostengo. Estou de olho em você.”. 

E veio uma gargalhada estrondosa, um riso gostoso que só na Bahia tem.  


 

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


4 comentários:

Gostei de ler. Muito pormenor antigo, muita suposta memória. Um final prazeroso em relação íntima com o anterior e o antigo.

Obrigado, Joaquim. Me honram suas palavras.

Uma pequena obra-prima, José Guilherme!

Uma pequena obra-prima, José Guilherme!

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