ALEGRIA, ALEGRIA


                                    (Revisitando  e adaptando aos novos tempos um conto do meu primeiro livro 

“30 segundos”, Ed. Publit, 2007) 


Edna Teresinha se assustou com o interfone tocando tão cedo. 

Estranhou o despertar repentino, pensou naquelas coisas quando 

somos acordados de supetão. Onde estou, que dia é hoje, quem 

deve ser? 

Há tempos, o interfone, o telefone e o celular não tocavam,

Nem se ouvia algum barulhinho de mensagem, naquele

quarta e sala em Copacabana.

Arrastou os chinelos até a cozinha, chutou o pé da cadeira 

com o mindinho, maldisse a vida. E soube, enfim, pelo porteiro, 

que havia duas encomendas.

Não se lembrava que tinha encomendado alguma coisa. 

Vestiu máscara, empapou as mãos de álcool em gel, abriu 

cuidadosamente a porta, em seguida, a do elevador. 

Estavam lá uma caixa e um sacola de compras.

Passou a mão na testa, franziu as sobrancelhas e espremeu a 

memória já claudicante para lembrar que tinha feito uma compra 

pela internet e pedido algumas bobagens ao supermercado.

Estava começando mais um despertar, um tanto diferente de outros 

dias tão vazios quanto iguais.

Jogou spray de Lysoform na caixa e na sacola, e as colocou 

sobre a mesa. Deixou as duas lá para que dessem algum sinal do que seriam. 

E partiu para passar um café salvador.

Não escovou os dentes? Não lavou o rosto? Não deu um jeito nos cabelos? 

Não. A solidão permite pular certas etapas da civilidade.

De caneca na mão, abriu primeiro a sacola. Uma garrafa de champanhe, 

um cacho de uvas verdes sem caroço e um queijo de minas.  

A hora da caixa foi mais celebrada. Finalmente, lembrou que tinha comprado 

um vestidão longo, esvoaçante e branco, sem muitos babados, sem manga, 

mas com um decote que julgara arrasador na foto da internet.

Entendeu tudo. E sorriu.

Colocou a garrafa e as uvas para gelar. Dividiu o queijo em dois, devorou 

a primeira metade. Gostava de queijo fresco com café sem açúcar, sua dieta 

era minimalista: apenas os legumes cozidos e frutas frescas que a menina da faxina deixava 

uma vez por semana, e vários comprimidos, alguns tarjas pretas, e muitos 

daqueles que prometem milagres e longa vida nos anúncios à tarde na televisão. 

Montou a tábua de passar roupa na sua minúscula sala e levou algum tempo para 

encontrar a extensão do ferro elétrico. Achou no fundo de um baú de tralhas, 

onde moram as coisas que a vida esqueceu.

Tão logo, já passava o vestido com esmero e um sorriso interior, o mesmo que 

permaneceu quando esticou cuidadosamente a roupa no sofá da sala. 

Voltou para tentar dormir. Não conseguiu. Passou o resto dia zapeando a 

TV com um pote de pipocas no colo. Só pipoca e algumas fatias de queijo branco.  

Qualquer outra coisa, acreditava, poderia comprometer a cintura no vestido. 

Quando o sol se pôs, entrou no chuveiro. Banho morno e longo, cafunés de shampoo 

e condicionador, uma gilete para fingir uma depilação devida, hidratante pelo corpo, 

antirrugas no rosto. Fixou o olhar nos olhos refletidos, simulou com as mãos uma 

esticada na pele abaixo das orelhas. Lamentou pelas plásticas adiadas, 

pela curta validade do Botox. 

Balançou a cabeça e o cabelo molhado salpicou o espelho, que lhe disse que estava 

bonita assim mesmo, sem secador, do jeito que o tempo e a circunstância esculpiram.  

Zanzou nua pela casa sem fechar as janelas por um tempo impossível de se precisar.

Às 23:05h foi à cozinha e pegou uma taça fininha no armário. Cheirou e passou água 

misturada com gelo, para tirar os sinais de pouco – ou nenhum - uso. 

Às 23:16h abriu a champanhe e serviu-se. 

Às 23:25h vestiu-se. O branco lhe caiu bem. O decote nem tanto.

Das 23:30h às 23:54h dançou, cantou, esvouou-se, rodopiou ao som da televisão que transmitia 

um show. E leve e descalça saltitou feliz até o quarto. 

Às 23:58h abriu as portas do armário. Um espelho contra o outro. 

Colocou-se no meio. Olhou para um lado, olhou para o outro, viu infinitas pessoas, 

todas de branco.

Meia noite, comeu uma uva, largou a taça esvaziada na mesinha de cabeceira, 

pulou num pé só, o direito, e bebeu na garrafa.

Mandou beijo praquela gente toda, levantou um brinde, encharcou o vestido de champanhe. 

E desejou Feliz 2021. 


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