Naquele último mês, na vila não se
falava em outra coisa. Desde que a notícia chegara através do serviço de
alto-falante, tornou-se a motivação da vida de todos os moradores.
E não era para menos... A vila havia
sido emancipada há pouco tempo, alçara à categoria de município, o primeiro
prefeito eleito ainda governava, e agora receberia a visita de uma ilustre
candidata à assembleia legislativa do Estado. Se tudo isso, tão novo, tão
diferente, já era motivo suficiente para tanto burburinho, imagine uma mulher
candidata em pleno início da década de 1960! Fugia muito dos costumes...
Os moradores, assim como as
autoridades, tiveram um tempo generoso para cuidar dos detalhes, dos
preparativos do evento. A loja de tecidos do Seu Pereira faturou como na época das
festas natalinas! As mulheres, cuidadosamente, escolhiam os tecidos e modelos
dos seus vestidos, das roupas das crianças, e dos calçados. Os velhos ternos
saíram das malas, foram arejados, meticulosamente escovados e passados a ferro.
Tudo deveria estar pronto para o grande dia.
Meu avô usaria o seu único e velho
terno. Com este terno ele ia a casamentos, batizados, velórios, missas, terços,
enfim, era a vestimenta oficial para os grandes acontecimentos da vila. E
chapéus, ele possuía apenas dois de feltro e um de palha. O de palha era o que
usava na lida diária com os cavalos que puxavam a charrete, instrumento da sua
profissão. Usava-o no corte do capim colonião, na escovação dos animais, no
corte da crina, dos cascos... Um chapéu de feltro um pouco descorado era seu
companheiro diário no trabalho como charreteiro da vila. Agora, o outro chapéu
de feltro, que não era novo, mas muito bem cuidado, fazia parte da indumentária
única de passeio. Complementava o traje de gala, ou seja, o terno único. Era o
chapéu de passeio.
No sábado, véspera do tão esperado
evento, o som do alto-falante, que ia ao ar três vezes por dia, trazia na voz
eloquente e animada do locutor, a grande expectativa e convocava cada morador a
se tornar um integrante da comitiva que faria a recepção da candidata. E todos
os moradores se orgulhavam por isso.
A candidata, da qual me recordo apenas
do primeiro nome, Conceição, morava em um município-polo interiorano, era de
família tradicional, estudada. Educada para seguir na carreira política. Uma
senhora de visão, como se dizia na época. Somado a toda essa expectativa estava
o meio de transporte que seria usado para a chegada da candidata. Ela desceria
na vila a bordo de um helicóptero! Imagine uma vila encravada no interior do
Estado, aonde a energia elétrica acabara de chegar, aonde todas as estradas que
lá chegavam e que por lá passavam eram de terra batida, e que possuía, como único
meio de comunicação direto com a capital diariamente, o rádio, que
acontecimento seria para seus moradores poderem ver de perto um helicóptero! Se
os adultos sonhavam com isso, avalie como ficava a imaginação das crianças! Nem
mesmo avião cruzava pelos céus daquela vila, e qualquer outra coisa que voasse
e que não fosse pássaro, inseto ou pipa, fazia parte apenas do imaginário da
grande maioria das pessoas que ali vivia. Eu, particularmente, aguardava aquele
domingo com a mesma ansiedade que esperava o dia de Natal para comer peru
assado e tomar guaraná.
A praça da matriz, onde o helicóptero
pousaria, era formada pelo quarteirão central da vila. Um quarteirão enorme que
formava um grande retângulo. A igreja matriz ocupava uma parte da lateral mais
estreita, era uma igreja bem acanhada, muito simples. Na lateral oposta ficava
um barracão de madeira coberto de telhas comuns, local onde aconteciam as
quermesses, as festas domingueiras, as festas juninas, os bailes populares, as
apresentações de sanfoneiros, violeiros, cantadores. Nesse barracão a candidata
seria recepcionada e ali ficaria um tempinho antes de acontecer o comício. Esse
barracão era imenso. Ocupava toda a extensão dessa outra lateral mais estreita,
oposta à igreja matriz. Numa das extremidades ficava a cozinha com paredes de
tábuas, que abrigava, no centro, um grande fogão de lenha, rodeado por jiraus
de madeira com várias torneiras, e muitas prateleiras. Nesta cozinha era
preparada e armazenada toda a comida dos eventos.
Formando o retângulo da praça, uma das
laterais maiores abrigava uma figueira imensa, viçosa, e que mesmo com o sol a
pino, conseguia cobrir, com sua sombra generosa, parte da rua de pedregulhos, e
que oferecia uma área sombreada ainda mais generosa para a praça, onde as
crianças podiam jogar futebol, bolinhas de gude, queimada... Ali, naquela
sombra, eu passava boa parte dos meus dias. Ainda
na sombra da figueira, na divisa da praça com a rua de pedregulhos, havia
bancos rústicos feitos de caibros e vigas de madeira, e neles os mais velhos
costumavam sentar para se refrescarem durante todo o dia, até o sol descer por
completo, e à noitinha eles abrigavam os casais enamorados.
Na outra lateral maior, que fechava o
retângulo da praça central, não havia nada. Apenas a terra vermelha, sem grama,
sem calçada, juntando-se à área da rua principal, esta com pouco cascalho e
muita terra solta. Por este lado seria finalizado o pouso do helicóptero que
traria a candidata. A notícia da ilustre visita se espalhou até mesmo pela zona
rural, então era esperado um público numeroso, quase como acontecia na
Sexta-feira Santa.
Domingo. Ainda escuro e a cama parecia
ter espinhos... Eu não tirava os olhos das frestas da janela de duas folhas que
havia no meu quarto. Esperava ansiosamente que a claridade do dia emoldurasse o
batente. E enfim, clareou... Pulei da cama, nem conseguia encontrar os chinelos
tateando o chão com a sola dos pés. Quando consegui calçá-los corretamente já
havia saído do quarto, atravessado o corredor e chegado à cozinha.
Minha
mãe, madrugadora, que também ansiava pelo acontecimento do dia, havia coado o
café, fervido o leite e a mesa estava posta. Eu estava com uma fome danada, mas
fiquei contrariada por ter que me sentar e tomar café como sempre. Queria
ganhar a rua o mais depressa possível, mas também avaliei que o dia seria longo
e intenso, e que eu precisava forrar o estômago para aguentar a maratona. E me
sentei... E comi... Quero dizer, engoli. Nem me lembro de como me vesti naquele
dia, do que vesti, do que calcei, mas me lembro da alegria que senti quando,
enfim, ganhei a rua.
Era
ainda muito cedo mesmo, minha mãe estava com a razão quando argumentou que eu
deveria comer com calma. Tudo ainda ia demorar. Subi pela rua principal, aquela
que passava ao lado da praça, do lado oposto da figueira. Apenas a padaria
estava aberta, e o cheirinho do pão assado saindo do forno era um agrado para
qualquer olfato, mesmo estando com o estômago saciado como eu. Não havia
qualquer criança por ali. Tudo quieto, muito quieto para o meu gosto.
Certamente as outras crianças resolveram ouvir os argumentos de suas mães. Tudo
ainda ia demorar.
Faltando
um quarteirão para chegar à praça, já era possível ouvir algumas vozes, e aí
apertei o passo. Estava ansiosa para ver o que estava acontecendo. Na esquina
da sorveteria parei para respirar. A pressa com que caminhei, misturada com a ebulição
de ânimo que a espera ocasionava deixaram-me ofegante. E na praça, tudo calmo.
O movimento das pessoas chegando para a missa das sete ainda era lento. Apenas
no barracão, que seria o centro das atenções, onde aconteceria o comício num
palanque improvisado e erguido do lado de fora, havia algumas mulheres fatiando
a mortadela. Mortadela que seria usada no recheio dos sanduíches a serem
servidos aos moradores que viessem recepcionar a ilustre convidada. Eram
dezenas de peças roliças de mortadela a serem cortadas, e os rolos ainda estavam
amarrados com barbantes reforçados, como aqueles rolos que eu sempre via
dependurados na venda do Seu Chico.
A
fornada dos pães encomendada pela prefeitura estaria pronta por volta das oito,
e então os pães seriam cortados ao meio, um a um, recheados com as fatias de
mortadela, e os sanduíches seriam cuidadosamente colocados em imensas bacias de
alumínio, cobertos com toalhas de mesa até serem distribuídos aos moradores.
Era sempre assim em todas as festividades. E tudo tinha um gosto tão bom!
Para
beber, como sempre, seria servido refresco de groselha. As mulheres já providenciavam
vários caldeirões e várias panelas imensas cheias de água. Ficavam ali,
tampados, e após o preparo dos sanduíches, os muitos litros de licor de
groselha mais o açúcar eram despejados nos recipientes com água, misturados com
grandes conchas, e depois o refresco era servido em canecas de alumínio. Não
havia copo plástico, não existia nada de plástico. A vila desconhecia a
palavra, o material “plástico”, e até hoje não sei se era apenas a vila, ou se
ele ainda não existia. Fui conhecer o plástico algum tempo depois...
Durante
a comilança, uma equipe de mulheres ficava na cozinha do barracão com a tarefa
de lavar as canecas que eram devolvidas pelos moradores conforme iam se
fartando. E todo esse processo acontecia de maneira calma, sem pressa, sem
tumulto. As pessoas eram ordeiras, mansas, extremamente generosas.
Não
demorou muito e as badaladas do sino da igreja ecoaram. Era o aviso de que a
missa das sete ia começar. A missa das nove fora cancelada em virtude do
evento. Eu sabia que se fosse para a igreja e acompanhasse a missa, a hora
passaria mais rapidamente, mas não me animei. Queria ficar ali, perto do
barracão, e acompanhar todo o movimento da chegada dos moradores.
Os
primeiros que chegaram foram os da zona rural. Famílias inteiras eram
transportadas em carrocerias de caminhão, em carretas puxadas por tratores, em
carroças, em charretes, e muitos homens chegavam montados a cavalo. Todas as
pessoas chegavam vestidas em suas melhores roupas, trajes domingueiros, e com
certeza muitos pés reclamavam do castigo dos calçados novos, do couro duro e ainda
não amaciado pelo uso. Mas valia a pena!
A
essa altura, os bares já estavam abertos, principalmente a sorveteria que
ficava na esquina da praça. Ali as mulheres e crianças refestelavam-se! Era um
sorvete de palito atrás do outro. Só se escutavam as vozes desesperadas das
mães preocupadas com os pingos de sorvete nas roupas domingueiras das crianças.
Afinal, a festa começaria dentro em pouco, e se não se cuidassem chegariam a
ela com as roupas em estado deplorável! Meus olhos acompanhavam tudo. E meus
ouvidos também... Conforme os minutos passavam, o movimento dentro e fora do
barracão se intensificava. O sol brilhava firme e pressagiava um dia muito
quente, com poucas nuvens, e tudo levava a crer que a sombra da figueira seria disputada
por muitos.
As
autoridades da vila, na sua maioria, estavam participando da missa prestes a
terminar. Na verdade já deveria ter acabado, mas o padre, experiente e
acostumado com festividades, com certeza dispensou um tempo maior na homilia,
talvez o dobro do tempo que costumeiramente dispensava. O sermão deve ter sido
extenso! E agora deveria estar se prolongando nos avisos que são dados ao final
do ritual domingueiro. Tudo cuidadosamente estudado para que os fiéis não
voltassem para suas casas após a missa, mas para que se juntassem à multidão
que se aglomerava na praça.
Meu
avô, todo paramentado, chegou. Passei rapidamente por ele, tomei-lhe a bênção,
e, de mansinho, deslizei por entre as pessoas.
E
a multidão foi adensando... Já passava das nove horas, a chegada da candidata
estava prevista para as dez, portanto, a expectativa ia crescendo na mesma
proporção em que a praça ia sendo tomada pelo povo.
De
forma generosa, os sanduíches começaram a ser distribuídos, principalmente para
aqueles moradores que vieram dos sítios em redor da vila. Bastava pedir para
qualquer pessoa da equipe que estava na cozinha do barracão, e seria
prontamente servido. Eu não sentia fome alguma, apenas uma ansiedade galopante
que formigava todo o meu corpo. Faltava pouco...
Na
vila a força policial era ínfima. Não havia necessidade de muito aparato, as
pessoas eram tranquilas, não havia perigo nem violência. Eu me lembro de dois
milicos que ajudavam em todos os eventos, não mais que isso. E agora não era
diferente. Estes nossos dois heróis estavam na praça, cuidadosamente
uniformizados, e calmamente explicavam aos moradores que deveriam deixar livre
o espaço central da praça para que o pouso do helicóptero fosse possível. Não
havia cordões de isolamento, nem delimitações da área do pouso. Tudo era
organizado apenas com o pedido do famoso “um passinho pra trás”. E as pessoas atendiam...
Formou-se, então, uma enorme clareira no centro da praça, espaço suficiente
para o pouso da aeronave.
Finalmente,
dez horas... Na praça, a multidão toda olhava para cima. As mulheres e crianças
usavam as mãos em conchas como toldos para os olhos, e fitavam o céu. Para os
homens era mais simples. O uso sistemático dos chapéus, alguns com abas
generosas, evitava a claridade excessiva que incomodava os olhos, ofuscando a
vista. E as cabeças estavam todas jogadas para trás, os rostos expostos ao sol,
e os olhos procurando avidamente o objeto voador que traria a candidata.
Meu
Deus, como doía o pescoço! Se pudesse deitar no chão seria mais fácil, mas não
havia espaço. Sentia no meu calcanhar, a ponta do pé do outro morador que
estava atrás. Isso mesmo, a multidão era compacta!
Bem
perto do palanque, as autoridades estavam perfiladas. O prefeito, o vice, os
vereadores, o padre, o juiz de paz, o oficial do cartório, o diretor da escola,
o médico do posto de saúde, as esposas e filhos. Todos com suas roupas
impecáveis, calçados engraxados e reluzentes, chapéus das melhores marcas. Tudo
fora preparado com muito esmero.
E
bem perto do palanque estava o meu avô. Orgulhoso, imponente dentro do seu
único terno, cuidadosamente escovado e passado pela minha avó, empinando no
alto da cabeça o seu chapéu de passeio.
Passei
os olhos por todos, eu estava na fileira da frente e via, privilegiadamente, a
grande clareira em forma de círculo no centro da praça. De repente um ruído pôde
ser ouvido. Era um barulho que se assemelhava à batida de asas de um bando de
pássaros. As pessoas, eufóricas, mesmo antes que o helicóptero aparecesse no
céu, apenas com o ronco do motor, aplaudiam, sapateavam de alegria.
E
ele surgiu... Lá no alto, muito alto, como um pontinho preto no céu... E foi
ficando maior, e maior, até que pôde ser visto detalhadamente. Era preto, com
duas listras amarelas nas laterais. Fez um sobrevoo do outro lado da praça,
acima da grande figueira que se alvoroçou toda. Conforme sobrevoava a figueira,
seus grandes galhos se vergavam e balançavam incontrolavelmente, num espetáculo
maravilhoso e assustador. Nunca vira nada igual, nem mesmo naqueles terríveis dias
de tempestade e ventania! Os moradores estavam extasiados! Aplaudiam
incessantemente, as mãos estavam vermelhas e quentes, e os pés incontroláveis.
O
piloto fez várias manobras subindo e descendo com a aeronave, encantando os
olhos de todos. De repente, subiu, passou bem alto sobre a igreja, e foi
baixando lentamente, conforme avançava em direção à multidão.
Como
a rua principal estava totalmente tomada pelas pessoas, não sei se o piloto não
viu, ou se não foi avisado de que ali havia muita terra solta, a aeronave foi
passando sobre a multidão e levantando uma nuvem de poeira vermelha que impedia
as pessoas de abrirem os olhos ou respirar. De repente tudo ficou vermelho, só
se viam espirais de poeira e chapéus rodopiando no ar.
O
piloto, percebendo a situação embaraçosa, subiu novamente com a aeronave, e
tentou entrar pela outra extremidade, onde a praça embicava com a sorveteria.
Mas, de nada adiantou. Outra nuvem vermelha de poeira se ergueu juntando-se à
primeira, e os chapéus que ainda estavam nas cabeças rodopiaram no ar. Foi tudo
tão rápido e espantoso que todos ficaram sem ação, não conseguiam raciocinar.
As pessoas se agachavam, tentando fugir do vento e da poeira. Nada mais podiam
fazer porque o vento era tão forte que não havia como correr.
O
piloto fez várias tentativas desastrosas de pouso, ora de um lado, ora de
outro, e a praça durante alguns minutos virou uma nuvem de pó, uma bolha
vermelha. Eu estava quietinha na linha de frente, agachada e tampando o nariz
com as mãos em concha, o que me permitia respirar com certo conforto.
Quando
finalmente o piloto pousou a aeronave no centro da praça, e a porta lateral foi
aberta, a candidata apareceu e levou um choque com o que viu mais de perto. A
praça era o caos instalado. Quem não estava agachado, estava em pé se debatendo
e sacudindo a roupa coberta de terra vermelha. Outros, desesperadamente
tentavam limpar os óculos para que pudessem enxergar e entender o que havia
acontecido. Os homens, assustados e incrédulos, com as mãos na cabeça, tentavam
organizar as ideias, os pensamentos, tentavam decidir que rumo tomar, para qual
lado sairiam em busca dos chapéus. Havia chapéus espalhados pela praça toda. Eram
centenas e centenas... Debaixo da figueira, o chão estava forrado de chapéus,
todos cobertos de pó vermelho, e assim, vistos de longe, pareciam todos iguais.
O problema é que não eram...
Aí
foi o corre-corre. Os homens iam pegando os chapéus do chão, um a um. Cada um
dava uma batida com eles nos joelhos para pelo menos enxergar se a cor conferia
com o que era seu, colocava na cabeça, caso não servisse, se não fosse a sua
medida, jogava novamente o chapéu no chão e saía à cata de outro... Um caos.
De
longe eu via o desespero do meu avô. A cabeça descoberta, os ralos fios de
cabelos brancos, empoeirados, e a testa grande exposta aos raios do sol
brilhava pouco devido a uma pequena camada da terra vermelha grudada pelo suor.
Virava de um lado para o outro, nem sabia o que fazer. De repente eu o vi
entrar na multidão que catava chapéus, depois, desapareceu das minhas vistas.
A
candidata, constrangida, acenava timidamente com a mão em um cumprimento encabulado,
mas ninguém prestava a menor atenção. Neste momento, as famílias ajudavam na
procura do chapéu do pai, do marido, do tio, do avô... Era um corre-corre na
praça que ninguém se entendia!
Os
cabelos da mulher do prefeito, que antes da chegada do helicóptero estavam
arrumados num grande coque no alto da cabeça, mostrando o capricho da
cabeleireira em desfiar os fios para darem mais volume, o cuidado em organizar
tudo num belo coque e fixar o penteado com laquê, agora, depois do episódio,
estava uma calamidade. O vento excessivo provocado pelas hélices do helicóptero
havia desfeito o coque, e as mechas de cabelo, antes desfiadas, se erguiam para
o céu como um ninho de guaxe, desfeito. E se isso não bastasse, ela ainda
estava coberta de pó. Que cena deprimente, ridícula! O prefeito tentou ajudar
passando a mão na cabeça dela por várias vezes para abaixar aquele chumaço, mas
foi em vão... Para abaixar aquilo só mesmo lavando os cabelos!
A
confusão na praça durou cerca de meia hora. As pessoas estavam desorientadas,
decepcionadas, e algumas estavam bem nervosas. Principalmente os homens. Muitos
ainda não tinham encontrado o chapéu, resmungavam, praguejavam, e olhavam
desconfiados para os chapéus que estavam nas cabeças daqueles que julgavam ter
encontrado o chapéu certo.
Ainda
não tinha cessado completamente o tumulto quando a candidata iniciou o comício.
No palanque, as autoridades não escondiam o constrangimento. Todos estavam num
estado deplorável, exceto a candidata que presenciara tudo de dentro do
helicóptero. Ninguém ouviu nada do discurso da candidata, nem quando ela passou
a palavra para o prefeito, ninguém prestou atenção a nada. As falas foram como
monólogos sem plateia. O tino de ninguém estava ali... Ninguém mais queria
comer sanduíche, nem tomar refresco. Na boca, a terra vermelha fazia os dentes
rangerem.
E
o comício acabou... Conforme as pessoas iam descendo do palanque, os dois
milicos de uniformes cinzas, agora cobertos de terra vermelha, tentavam abrir
espaço para que a candidata pudesse retornar ao helicóptero. Aí, percebido isso,
foi uma correria geral. Ninguém queria presenciar a decolagem. Outra vez a
nuvem de terra vermelha, o rodopio dos chapéus no ar... E todos corriam em
busca de um abrigo, fora da área da praça.
Eu
corri para a sorveteria, mas muitas pessoas, como foi contado depois, saíram em
tão desabalada carreira que conseguiram chegar às suas casas antes mesmo do
helicóptero decolar.
Após
a partida da candidata, ainda havia chapéus no chão, e ainda havia homens catando,
sacudindo o pó e os experimentando. Enfim, o evento se tornou uma calamidade.
Foi tão triste que ninguém mais quis falar sobre isso. Nunca mais se falou no
ocorrido. Todos se calaram... E o mais impressionante é que nunca foi comentado
se a candidata obteve algum voto na vila ou não. Nada nunca foi falado.
Meu
avô, que tanto se preparou para a recepção daquele dia, que teve seu chapéu de
passeio arrancado da cabeça pelo vento provocado pelas hélices do helicóptero, um
velho português, bravo, turrão, mal-humorado, sistemático, nunca se conformou
com o ocorrido.
Na
sala da casa dele havia um mancebo de madeira, e ali ficavam o guarda-chuva e
seus dois chapéus de feltro: o de uso diário e o chapéu de passeio. Diariamente
ele se sentava na cadeira da sala, ao lado do rádio, de frente para o mancebo.
Ali ouvia, todas as noites, os programas de rádio. Depois do ocorrido, ele
sempre espreitava o chapéu de passeio no alto do mancebo, e falava com a mesma
convicção que aquele chapéu, apesar de idêntico, não era o dele.
Durante
muito tempo, silenciosamente, continuou tentando identificar o seu chapéu na
cabeça de outro morador da vila.
E
ele morreu, seis anos depois, sem mudar o discurso.
Regina Ruth Rincon
Caires
1 comentários:
Não tem preço rir sozinha , quase senti o gosto na boca da terra vermelha .
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