Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Lealdade



Ela faz questão de não esconder do marido. Puxa, incisiva, com os dentes incisivos, várias lasquinhas do esmalte vermelho. Veio da manicure ontem, mas a tinta da mão esquerda já beira a meia-lua na raiz das unhas. 

Não é possível, Rosana. Você continua desse jeito por conta de uma coisa tão pequena.

Pequena? Ela bate o cantinho do dedo na mesa. Você acha pouco o que fez comigo?

Você sempre foi generosa. Vive se gabando de altruísmo.

— Do meu desprendimento cuido eu.

— Já vi você jogando seus trecos num saco plástico e entregando a bolsa de couro de vespa praquela mendiga. Já vi você doando o vestido que te dei no último aniversário pra diarista da vizinha. Já vi você fazendo campanha pra pagar o tratamento do Zelito.

— E não me arrependo. Dei, tá dado. Ajudei com gosto.

— Que ótimo.

A gata Bovary sobe no colo de Rosana. Bate a patinha no braço da dona e lambe suas unhas lascadas.

Cada um tem seu jeito, Jéferson. Você precisa respeitar o meu, senão este casamento azeda.

— Então agora é crime doar o resto de um sanduíche para um menino faminto? 

— Condenado por justa causa. Você me traiu.

— Gente, não estou te reconhecendo. Rosana, o que aconteceu?

Bovary mia forte, encarando Jéferson.

Não sabe até hoje que eu guardo o pedaço mais cheio de maionese, a porção de hambúrguer mais suculenta e o gole mais gelado de coca pro final, pro meu grand finale? Você não me perguntou nada.

— Você tinha ido ao banheiro, criatura. Já tinha deixado o resto no prato.

Jéferson puxa a nota fiscal de dentro do bolso e amassa o papelzinho que recebera na lanchonete.

Por que não me esperou? Eu já estava voltando. Posso dar esse pedaço pro menino? Perguntasse. Eu dizia não, e tudo bem. Enquanto eu me olhava no espelho, esfregando as mãos, até salivei, pensando no pedaço que eu tinha deixado sobre a mesa.

— O menino ficou tão feliz. Desembrulhou e saiu comendo, satisfeito. Você precisava ver. E você tinha pedido um sanduichão enorme.

— Eu podia comprar um bem grande pra ele, um mc donalds, um bk, um refil pro menino encher com o tanto de coca quisesse. Eu podia cozinhar hambúrguer pra família dele toda comer a semana inteira, podia ensinar pra ele que hambúrguer é escrito com h, tem acento agudo no u, uma paroxítona aportuguesada que termina em r; mas aquela carninha, aquele pãozinho redondinho, aquele cheddar, aquela lasquinha de alface que sobrou, aquele meio do pão, bem redondo, era meu. MEU. Entende? Aliás, como meus são os desejos, como minha é a liberdade de comer quando e quanto eu quiser, como meu é o corpo que não quer filhos e não quer netos e não quer cachorros e não quer viagem pra Bahia e não quer fazer exercício e não quer plástica e não quer se deitar com você (nem com a promessa de um galeto com farofa de ovo no alpinus, filé acebolado no faisão dourado, nem com o convite pra um sorvete de tapioca no saborella). Entenda. A minha caridade eu faço como eu bem entender. Você tá parecendo a minha mãe, Deus a tenha, que fazia promessa pra eu pagar, que combinava com a santa sem eu saber. Você dá minhas coisas pros outros sem combinar comigo. Tá vendo o erro?

E ela começa a puxar também as lascas de base incolor das unhas do pé.

— Pare de se meter no meu sanduíche. Pare de ficar me obrigando a parecer melhor, mais caridosa que eu já sou. O pedaço de sanduba era meu. Traidor. Corrupto. Você queria lucrar em cima dele? Esse tipo de indulgência não resolve.

— Desculpa, Rosana. Você enxerga tanta coisa. Vamos lá na lanchonete hoje de novo? Deixo o meu último pedaço pra você. Prometo.

— Não, Jéferson. Hoje você não me compra nem com uma caixinha inteira de geleia de mocotó colombo. Não quero remendo. Só queria o direito de desfrutar da última mordida no meu sanduíche. Hoje não. Aquele dia, aquele dia. Mas isso não volta, né, Bovary?

A gatinha balança a cabeça.

 

Corta, corta diz o diretor. Só não mandei parar antes porque a interpretação dessa gata tá demais. Mas precisamos repetir. Nossa. Tem lasca de esmalte no cenário todo. Gente, eu preciso de uma cena mais real, e sem sair tanto do roteiro. Que mania é essa de abusar do improviso? Por favor, Daniela. Detalhes significativos, meus caros. Quero vida, sensação, entusiasmo. Rasguem as aulas de filosofia, o tom de confessionário. Esqueçam as terapias de casal e me venham apenas com o frescor do dia a dia. Sem exagero. Se querem mesmo entrar no próximo Tchékhov que vou dirigir, precisam melhorar muito. E seu papel tá garantido, madame gatínea. Miau.

 

Maria Amélia Elói

Share