Edmundo, estatura média, rosto macerado de rugas lavradas
por sessenta e oito anos de vida, olhou para a entrada da casa onde tantas
vezes estivera. A música escutava-se cá fora e as batidas sentiam-se no peito.
Estava hesitante. Há vários anos que não entrava naquele sítio, onde vivera
tantas horas de diversão. Parecia tudo na mesma, ele é que era uma sombra do
que fora.
Olhou para os seus dois amigos, como que para confirmar se o
deveria fazer. António fez um sorriso triste, mas incentivador e Joaquim, de
lágrimas nos olhos, acenou-lhe afirmativamente e deu-lhe uma pequena palmada
nas costas. Ambos eram mais novos que ele uns bons dez anos, mas, desde que se
conheceram numa escola de dança há mais de duas décadas, tornaram-se
inseparáveis e as respetivas mulheres amigas para sempre… até Alice ter
partido.
Aceitou o incentivo e sentindo o coração bater
apressadamente, como se fosse outra vez um adolescente, lançou as pernas a
subir a escada que levava ao primeiro piso, onde há muitos anos se faziam
aqueles bailes semanais.
A música ensurdecedora, o salão cheio, a multidão dançante,
traziam um prazer e uma adrenalina que já não se lembrava como lhe faziam falta
e como fizeram parte da sua vida durante uma grande extensão dela… sempre
acompanhado da sua Alice. Desde a juventude, ambos jovens e virginais, dançavam
na romaria da aldeia, ao som de bombos e violas desafinadas, tentando passar
despercebidos das velhas comadres, que eram capazes de encher de epítetos pouco
nobres, até a mais casta das criaturas. Depois, casados, continuaram a correr
todas as festas que podiam, sempre que o tempo ou o trabalho deixavam. Quando
migraram para a cidade, a mudança de ares obrigou à mudança de atitudes, mas a
dança fez sempre parte das suas vidas.
O grupo de cinco ocupou a mesa previamente reservada, como
sempre foi hábito. Edmundo ficou sentado, embevecido, a apreciar os dançarinos
de diferentes graus de habilidade, que alegremente rodavam em volta da pista. Há
quantos anos ele e Alice fizeram parte dessa mole humana, encantada pelos
acordes mais ou menos maviosos dos músicos? Parecia uma eternidade, mas, na
verdade, fora há apenas seis anos a última vez que ali estivera. A sua mulher,
eterna companheira, já não aguentava sequer subir as escadas, os pulmões
inexoravelmente consumidos pela doença prolongada que acabou por a levar.
Os seus amigos
rodavam alegremente na pista ao som das músicas por demais ouvidas e outras nem
tanto. O grupo era desconhecido, afinal havia novidades naquele mundo, que ele
achava, tinha parado no tempo com a sua ausência.
De súbito, Madalena, a mulher de António, possivelmente
instruída por este último, veio buscá-lo para dançar. Ele olhou o amigo,
surpreendido e deparou com um sorriso aberto e incentivador.
Lentamente avançaram para a pista, ela era uma bela e
elegante mulher, um pouco mais alta que ele e o vestido justo fazia-a ainda
mais deslumbrante. Edmundo sentiu-se muito feliz enquanto os acordes do bolero
gradualmente acordavam em seu corpo o dançarino de outras eras. Dançaram mais
duas vezes, apesar dos seus joelhos e costas rangerem de contrariedade.
Terminada a melodia, agradeceu à amiga e pediu para se
sentar, para recuperar de um esforço a que já não estava habituado e uma vez
mais, apreciou-a, satisfeito, quando ela partiu para nova dança, desta vez com
o marido. Também Alice se preparava bem quando “iam ao baile”, conforme se
referiam aos encontros mais ou menos semanais, nos salões de dança da região. Ela
vestia os seus melhores vestidos, pintava uma pequena sombra nos olhos e dava
um brilho nos lábios, que nunca fora de grandes pinturas. Mas para ele, era uma
princesa a seu lado, que lhe concedera a subida honra de a acompanhar… mesmo
quando o seu corpo começou a ficar pesado pelo descontrolo hormonal e mais
tarde demasiado magro, por não conseguir alimentar-se.
Agora era Fernanda, a mulher de Joaquim, quem o convidava,
também esse amigo estava feliz, porque ele assim o estava. Era uma forma de lhe
darem as boas vindas ao grupo.
Dançaram um tango e logo de seguida uma valsa, para que se não
adormecesse na pista e Edmundo teve de parar mais um pouco, com o velho coração
a galopar furiosamente.
Sentou-se, com um largo sorriso de agradecimento para os
seus grandes amigos, pois era a primeira vez que estava realmente feliz, desde
que Alice caíra ao levantar-se da cama e não conseguira mais suster-se pelo seu
pé. Este era o primeiro dia em que o seu sorriso era verdadeiro e não um pobre
consolo para alguém que se finava a olhos vistos, numa lenta agonia de quatro
anos, até se acabar de vez, há dois.
Mas hoje era um dia de felicidade e resolveu fechar os olhos
um pouco, mantendo o enorme sorriso nos lábios. O seu corpo relaxou e sentiu
uma grande paz.
Sonhava. O salão já não era o salão, era o imenso céu azul,
onde fulgurava o sol, numa esplêndida tarde de verão. Os músicos não tocavam boleros,
mas sim as pouco afinadas modas da sua juventude, onde conseguiu distinguir a
rabeca do ti Feliciano e o tambor do Zé Pedreiro.
Os seus amigos aperceberam-se que algo não estava bem e
chamaram-no e abanaram-no insistentemente. Ele não os escutava, não deixaria
que o tirassem do seu sonho, nem quando um homem ajudou a deitá-lo e iniciou
manobras de reanimação. Todo o salão parou, perante a agitação em volta de
Edmundo.
Ele já não se interessava. Os dançarinos já não vestiam as roupas
modernas e dançavam alegremente, levantando a poeira do chão de terra batida.
De repente, lá estava ela a caminhar ao seu encontro; o vestido de alças aos
quadrados vermelhos e as sandálias de couro da mesma cor. Os cabelos negros e
longos que lhe desciam pelas costas, encimavam o belo rosto, sem mácula, da sorridente
Alice com quinze anos. Ele ergueu-se, sem dores nem cansaços e viu que a mão
que lhe estendia, não era esquálida ou peluda, nem manchada pela idade. E
assim, sorrindo de felicidade, lançaram-se na dança, desfrutando da primavera
da vida.
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