UNS CHATOS

Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones. 
Passava dias de quarentena entre aulas on line e seu violão. 
Auto didata, tirava músicas com a parceria da internet 
e assim foi acumulando um repertório digno de um menino da sua 
idade, com algumas incursões em canções mais suaves. 
Quando fez 15 anos, ganhou dos pais um violão elétrico. 
E no dia seguinte, uma quarta feira comum, em torno de 11:30 h, 
passou a dedilhar Black Bird, acordes de Lennon e McCartney
que voam como um passarinho embalado pela ternura ao vento. 
Claro, o som saiu amplificado, como convinha ao brinquedo novo. 
Não era um rock pauleira, um heavy metal,  ou um Helter Skelter, 
dos mesmos rapazes de Liverpool, que toparam o desafio de Pete 
Thousend do The Who em compor uma música suja e barulhenta. 
Voltando ao nosso garoto e seu violão elétrico.
Imaginou o menino que estivesse nas varandas da Lombardia, 
espalhando música e delicadeza para amenizar dores de perdas, 
medos de morrer e sacos cheios do isolamento. 
Imaginou o menino receber a cumplicidade das varandas, 
onde as pessoas cantariam juntas, retribuindo a gentileza do gesto 
e da canção. 
Mas eis que um vizinho explodiu. 
- Desliga essa m#$da! Tem gente trabalhando! 
E houve adesão. 
- Para com essa p#@ra, vagabundo!
E mais: 
- Enfia essa música no c#, filho da p&ta! 
Ouviu-se um frágil contraditório. Entrou uma voz feminina, aflautada, 
adolescente, sensível: 
- Aumenta o som! Tá lindo! 
Porém, mais uma vez, a estupidez reincidente nesses tempos obscuros saiu 
vitoriosa. Os pobres diabos conseguiram. Não conhecem o que a música 
é capaz de operar dentro do peito e se infiltrar por veias e artérias. . 
Não conhecem a educação, os bons modos, as palavras que abraçam. 
Seus vocabulários se limitam a termos que carregam tão somente virulência.
Não conhecem a sensibilidade, muito menos o advento dos fones de ouvido, 
que poderiam ter isolado o som exterior, evitado a baixaria e deixado 
a música se espalhar numa paz de invadir corações e de tirar os meus pés 
do chão, com licença do Mestre Gil.  
O menino botou seu violão no saco e mergulhou numa tristeza profunda, 
emudeceu a pureza da sua oferenda e fechou a janela para um mundo 
que não era dele. 
Os insensíveis voltaram às suas cavernas. Intolerantes, arrogantes,
deselegantes, donos de si e das varandas alheias, brutamontes de
corpo e alma foram reabastecer a ira.
Uns chatos. 
Tais miseráveis de espírito não deixaram de ter uma certa dose de sorte: 
meu filho baterista há tempos se mudou para São Paulo.

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