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quinta-feira, 20 de agosto de 2020

UNS CHATOS

Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones. 
Passava dias de quarentena entre aulas on line e seu violão. 
Auto didata, tirava músicas com a parceria da internet 
e assim foi acumulando um repertório digno de um menino da sua 
idade, com algumas incursões em canções mais suaves. 
Quando fez 15 anos, ganhou dos pais um violão elétrico. 
E no dia seguinte, uma quarta feira comum, em torno de 11:30 h, 
passou a dedilhar Black Bird, acordes de Lennon e McCartney
que voam como um passarinho embalado pela ternura ao vento. 
Claro, o som saiu amplificado, como convinha ao brinquedo novo. 
Não era um rock pauleira, um heavy metal,  ou um Helter Skelter, 
dos mesmos rapazes de Liverpool, que toparam o desafio de Pete 
Thousend do The Who em compor uma música suja e barulhenta. 
Voltando ao nosso garoto e seu violão elétrico.
Imaginou o menino que estivesse nas varandas da Lombardia, 
espalhando música e delicadeza para amenizar dores de perdas, 
medos de morrer e sacos cheios do isolamento. 
Imaginou o menino receber a cumplicidade das varandas, 
onde as pessoas cantariam juntas, retribuindo a gentileza do gesto 
e da canção. 
Mas eis que um vizinho explodiu. 
- Desliga essa m#$da! Tem gente trabalhando! 
E houve adesão. 
- Para com essa p#@ra, vagabundo!
E mais: 
- Enfia essa música no c#, filho da p&ta! 
Ouviu-se um frágil contraditório. Entrou uma voz feminina, aflautada, 
adolescente, sensível: 
- Aumenta o som! Tá lindo! 
Porém, mais uma vez, a estupidez reincidente nesses tempos obscuros saiu 
vitoriosa. Os pobres diabos conseguiram. Não conhecem o que a música 
é capaz de operar dentro do peito e se infiltrar por veias e artérias. . 
Não conhecem a educação, os bons modos, as palavras que abraçam. 
Seus vocabulários se limitam a termos que carregam tão somente virulência.
Não conhecem a sensibilidade, muito menos o advento dos fones de ouvido, 
que poderiam ter isolado o som exterior, evitado a baixaria e deixado 
a música se espalhar numa paz de invadir corações e de tirar os meus pés 
do chão, com licença do Mestre Gil.  
O menino botou seu violão no saco e mergulhou numa tristeza profunda, 
emudeceu a pureza da sua oferenda e fechou a janela para um mundo 
que não era dele. 
Os insensíveis voltaram às suas cavernas. Intolerantes, arrogantes,
deselegantes, donos de si e das varandas alheias, brutamontes de
corpo e alma foram reabastecer a ira.
Uns chatos. 
Tais miseráveis de espírito não deixaram de ter uma certa dose de sorte: 
meu filho baterista há tempos se mudou para São Paulo.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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