O aviso fora dado pela enésima vez...
Mas, vivendo a plenitude da meninice, como
resistir a um banho de açude naquele calor infernal?!
Nos arredores da vila, nas áreas de
vários sítios e fazendas, os açudes multiplicavam-se ano a ano. Escavados,
brotados das minas; enfim, eles espocavam
convidativos, tentadores.
E assim, para o desespero e a
preocupação dos pais, não havia tarde que não terminasse com os meninos varando
cercas de arame farpado, cruzando plantações, pastagens, e mergulhando nas
águas nem sempre limpas daqueles imensos açudes.
E, apesar dos inúmeros avisos, Mário
estava sempre entre eles. Cansava de prometer a si mesmo que não mais desobedeceria
às ordens do pai, que não quebraria o acordo firmado com ele, mas era uma
tentação quando os ponteiros do relógio da igreja matriz iam marcando três
horas da tarde...
Os meninos, sorrateiros, esgueiravam-se
das casas, da praça, e seguiam em direção de algum açude. E aí o coração não
resistia! Mário, num átimo, jogava às favas as promessas, e só se acalmava
quando sentia o frescor das águas do açude no seu corpo...
E todos faziam tudo do mesmo jeito.
Quando estavam bem próximos do açude, principiavam a correr enquanto desatinados
se despiam. Na largueza da inocência, na sofreguidão da liberdade. Calção e
camisa eram tirados do corpo e displicentemente enrolados. Cuecas e sapatos não
havia. Naqueles tempos, meninos não usavam cuecas, e calçado nos pés era só
para a escola, igreja ou passeio.
Cada um escolhia um lugarzinho para
deixar a sua acanhada trouxinha a salvo até que saísse do banho. Podia ser junto
ao tronco de uma árvore, na sombra de uma moita de capim, sobre um cupinzeiro,
não importava. A única preocupação é que a roupa ficasse protegida da água do
açude.
Mas o pai de Mário queria colocar ponto
final naquela série de desobediências, e o pobre caborteirinho nem de longe
imaginava que seria justamente naquela tarde.
Lépido, ardiloso, conluiado com os
companheiros, num triscar de olhos atravessava os pastos, as plantações, vazava
as cercas, se despia, arrumava as roupas perto do tronco de uma árvore, e se
jogava no açude.
E o açude virava uma festa! A água,
antes serena, pipocava com os saltos, e logo, com o incessante pisoteio agitado
de todas as crianças, o barro do fundo ia subindo e turvando tudo, até formar
um lamaçal. Parecia um bando de jacarés rolando os corpos nus.
E o barro grudava nos cabelos, nas
costas, sob as unhas, nas curvas das orelhas... Por mais que se esfregassem
para limpar, não havia como não levar resquícios para casa e, consequentemente,
fragilizar a argumentação de que não incorreram na desobediência de nadar nos
açudes. As evidências estavam sempre presentes. Se não na roupa, com certeza,
no corpo.
Naquela tarde, no meio das risadas, dos
saltos, das brincadeiras, ouviu-se uma voz ao longe, gritando:
- Mário! Mário, você está aí?!
Mário, que reconheceu a voz do pai,
estremeceu.
De longe, o açude apinhado de
cabecinhas enlameadas, brilhando ao sol, silenciou. Era totalmente impossível
reconhecer cada criança.
O mais experiente deles, numa tirada de
mestre e líder, respondeu:
- Seu Osvaldo, o Mário não está aqui,
não!
E Mário apavorado, petrificado, meio
escondido atrás de dois amigos, prendia a respiração, não conseguia arfar o
peito tamanho era o medo.
Seu Osvaldo, aparentando muita calma,
respondeu:
- Está bem... Eu me enganei pensando
que ele estivesse aqui...
Dizendo isso, Seu Osvaldo deu
meia-volta e lentamente foi caminhando em retirada, refazendo quase o mesmo trajeto
que percorrera na vinda.
As crianças,
percebendo que ele se afastava, voltaram às brincadeiras, às cambalhotas, e às
risadas como se nada tivesse acontecido. Mário ficou meio ressabiado, mas logo
esqueceu. E brincou... Como brincou...
Seu Osvaldo, com olhos astutos de quem
um dia já fora criança, ia caminhando lentamente e olhando de esguelha cada
trouxinha de roupa colocada aqui e ali. E encontrou a trouxinha de Mário, com
aquela velha camisa, surrada. Disfarçadamente, abaixou-se e rapidamente a recolheu.
Estavam ali a camisa e o calção.
Seu Osvaldo continuou a caminhada rumo
à vila, abraçado à trouxinha de roupas do filho. Calmamente... E seguiu para
casa.
O sol estava baixando, e era chegada a
hora de Mário cuidar da limpeza do corpo antes de vestir a roupa e seguir de
volta para a vila. Era preciso estar em casa antes da escuridão da noite chegar.
E todos foram saindo do açude.
Mário se lavou inúmeras vezes,
esfregava o couro cabeludo com as unhas até que ardesse. Esperava a água se
acalmar, esperava a lama assentar-se no fundo, e mergulhava a cabeça para se
livrar do barro. E esfregava cada curvinha das orelhas para remover o barro
teimoso que insistia em não sair.
Pronto. Agora, era só andar devagar até
encontrar a árvore onde deixara as suas roupas. Caminhando devagar, evitaria
que o barro fosse espirrado nas pernas e o corpo ficaria completamente seco com
os últimos raios do sol.
E assim foi...
Os companheiros estavam quase todos
vestidos, muitos já caminhavam de volta, e Mário ainda procurava as suas
roupas. Olhava de um lado, de outro, e nada. Foi ficando intrigado e pôs-se,
desesperado, a perguntar a um e a outro.
Nada... Em poucos minutos virou uma
verdadeira caçada às roupas de Mário. Inutilmente... Os mais medrosos
puseram-se a correr rumo à vila. Não podiam se atrasar! Os companheiros mais
chegados, calados, cansados da busca e imaginando o que havia acontecido, foram
se dispersando.
E Mário ficou ali, parado. E nu.
Sabia exatamente o que o aguardava. O
pai havia levado as suas roupas, e ele teria de enfrentá-lo. Nu...
E, como chegar até lá? Como um menino
de dez anos pode atravessar uma vila, assim, pelado?!
Olhando o céu e percebendo que logo
seria noite, juntando a vergonha de caminhar nu e o medo do escuro, Mário foi
mudando os passos, vagarosamente.
O trecho de volta, naquelas condições,
tornava-se mais longo, infinitamente mais longo, e logo precisou apressar o
passo. Assim, ele foi correndo de árvore em árvore, de moita em moita, para
tentar esconder a sua nudez.
Mário vazou cercas, cruzou pastos,
plantações... Nu.
Ficou apavorado quando percebeu que
estava perto da vila. Como passaria pelas casas, como enfrentaria as pessoas,
assim, pelado?!
E foi caminhando, aos trotes, aos
pulos...
O sol sumiu, a noite estava à porta. E
o medo, também...
Atravessou a primeira rua da vila,
escondeu-se atrás de uma casa. Ainda bem que não existiam muros. Só cercas.
E foi, já no escuro da noite, correndo
de parede em parede, esgueirando-se por moitas de bananeiras, varando cercas,
atravessando ruas na noite escura. E a cada espaço de tempo, respirava fundo,
benzia-se e pedia a Deus para que aplacasse a ira do seu pai. Não escaparia da
cinta, disso ele sabia. O que pedia a Deus é que as cintadas fossem menos
iradas, mais suaves...
Enfim, Mário chegou ao quintal de casa.
Caramba, no varal não havia nenhum pano, nada para se cobrir!
Tinha certeza de que o pai, a mãe e
seus irmãos estavam lá dentro, esperando por ele. E sabia que seus irmãos iriam
cair na risada quando ele entrasse pelado. Talvez não. O pai devia estar
furioso e os irmãos não iriam ter coragem de rir! Duro ia ser aguentar a
gozação, a zoeira dos próximos dias... Mas
não queria pensar no depois. Tinha de resolver o agora. E com a voz quase sumida,
disse:
- Pai!
Nada, ninguém apareceu.
- Paiêêê!!!
Gritou tão forte que chegou a fechar os
olhos.
E o pai apareceu. Imenso. Parecia maior
que a porta!
E Mário ali, em pé, no escuro, e
pelado. Nem queria olhar para a mão dele. A cinta deveria estar ali, saltitante,
ávida pelo seu lombo, pronta para estalar...
Mas não estava. Para sua surpresa e
alívio, não estava.
Mário caiu no choro. Choro de vergonha,
de medo, de arrependimento, de tudo...
E Seu Osvaldo entendeu. Não seria
preciso castigar mais. Limitou-se a buscar uma toalha, cobrir o filho,
abraçá-lo e dizer:
- Mário, meu filho, que esta seja a
última vez!
E parece que foi...
Regina Ruth
Rincon Caires
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