Com quase setenta anos, João Henrique Antunes era ainda um homem elegante e bem-parecido. Naquele frio fim de tarde de março, hesitava frente à capela mortuária, debaixo do céu cinzento de nuvens ameaçadoras. Algumas das pessoas que entravam, olhavam-no com curiosidade.
Por fim, encheu o peito de ar e subiu os quatro degraus necessários para atravessar o umbral.
Lá dentro estava quente. Viam-se irradiadores nas paredes laterais. No centro da nave estava um caixão coberto de flores, com muitas mais no chão. De um lado e outro do esquife, pessoas sentadas e, aqui e além, pequenos grupos que conversavam em voz baixa. Todos olharam o recém-chegado com variados graus de curiosidade e persistência, mas a maioria regressou ao que estava a fazer.
João, após mirar rapidamente os presentes, despiu o sobretudo azul escuro e colocou-o sobre o braço, dirigindo-se depois à mesa, onde se encontrava o livro de condolências. Por uns segundos, repousou os olhos azuis sobre a foto ao lado do livro. A mesma fotografia que vira no jornal: Eduarda, mais de quarenta anos depois! Embora a dor que ela provocou na altura, estivesse bem gravada na memória. Estava mais velha, claro, mas envelhecera bem, continuava bela. Os olhos castanhos e o rosto moreno, adornado pelo cabelo, agora branco, era a mulher que ele gostaria de ter a seu lado. Ele, que estava viúvo há mais de dez anos.
Assinou o livro com a caligrafia quase ilegível, que lhe era característica e acrescentou “Eterna Saudade”, enquanto pensava quantas vezes, noutros casos, tinha dito estas duas palavras tão sentidas, sem que significassem praticamente nada.
Encarou então as pessoas à volta do ataúde. Reconheceu um ou dois rostos, de amigos dela, mas de quem já nem recordava o nome, mas distinguiu o irmão de Eduarda, que aparentemente não tinha tirado os olhos dele, desde que chegara.
Altivamente, costas bem direitas, dirigiu-se a ele, Pedro, que sempre o culpara de algo que ele suspeitava o que era, mas nunca teve a certeza. Estendeu a mão num cumprimento, a que o outro tardou em responder, fitando-a como se tivesse lepra. Por fim, Pedro ergueu-se, apertou-lhe a mão e abraçou-o, dizendo-lhe ao ouvido: “Que fazes aqui? Não sabes que não és bem-vindo?”
João afastou-se ligeiramente do homem, fitou-o nos olhos, tão parecidos com os da irmã e com um sorriso triste, respondeu-lhe, num meio sussurro: “Os meus sentimentos pela tua perda.”
Depois, virou-lhe simplesmente as costas, para olhar o corpo em repouso no caixão. Parecia mais pequena, embora ela nunca tivesse sido grande. A mulher pequena e turbulenta, que fez as delícias da sua vida, por cerca de três anos. Apesar do seu tamanho, quando o deixou, ficou um enorme espaço vazio, que nunca ninguém conseguiu preencher… e ele bem tinha tentado.
As memórias daquela época, os finais da década de 1980, estavam bem frescas na sua memória. Com vinte e oito anos, estava num período excelente no departamento de marketing da empresa onde trabalhava; ganhava bem, era amigo do patrão e o mundo sorria-lhe, principalmente a parte feminina. Vivia com Eduarda há três anos, que conhecera no casamento do irmão, Pedro, com quem se fizera amigo na faculdade.
Eduarda conseguia encher uma casa, a falar e a rir das suas próprias palavras. Tinha sempre tema de conversa e ele recordava-se de muitas vezes lhe ter pedido para se acalmar e falar menos, que estava cansado de a ouvir. Não imaginava, na altura, como haveria de lhe sentir a falta.
— Não ouviste o que te disse? — Insistiu Pedro, sobre o ombro, em voz baixa.
— Sim, ouvi. — Respondeu João asperamente, no mesmo tom, sem se voltar. — Não tens o direito de decidir isso, como não tinhas o direito de te intrometer.
— Ela era minha irmã! — O outro começou a alterar-se.
— Acalma-te e senta-te, não queiras dar espetáculo. — Tornou João, mais conciliador. — Tua irmã, mas minha mulher, a tua intromissão entre nós, deu no que deu.
— O quê?!? — Pedro ficou lívido. — Queres justificar os teus atos com a minha intromissão? Eu tive de intervir, para a defender das tuas atitudes. Porque foste tu que a afastaste! Eu só colaborei naquilo que ela me pediu: que nunca te dissesse onde ela estava.
— Era minha mulher e eu tinha o direito de saber, de lhe perguntar porque me abandonou, se estava tudo bem entre nós. — João voltou-se para o interlocutor. — Tinha direito a uma segunda oportunidade…
— …ou terceira, ou quarta… — Continuou o outro com um sorriso de escárnio. — Estavas sempre a traí-la! Foi por isso que te abandonou!
Os presentes estavam a ficar nervosos com a conversa dos dois, cada vez mais alterados.
— Senhores, por favor. Respeitem ao menos a mulher, que aqui está deitada. — Um outro homem, dos seus quarenta anos, logo seguido por uma mulher pouco mais nova, aproximaram-se. — Tio, então? — Dirigiu-se a Pedro que, assim admoestado, virou costas e abandonou a capela.
— As minhas desculpas, não devia ter cedido à provocação. — Pediu João. — Eu sou ex-marido da Eduarda e…
— Sim, a minha mãe disse-me, pouco tempo antes de falecer, que poderia aparecer por aqui. — Continuou o homem. — Meu nome é Henrique e sou o filho mais velho, esta é a minha irmã, Idalina.
Olharam-se nos olhos e a João pareceu-lhe ver uma versão de si próprio quando era mais novo. Não lhe faltavam os olhos aquosos azuis e o nome parecia um carimbo de identificação. Já Idalina, tinha os olhos castanhos e pequenos da Eduarda.
— A minha mãe deixou-me uma carta para si. — Também Henrique parecia perturbado com aquela semelhança, enquanto lhe entregava um envelope. — A doença que a levou, foi lenta a consumi-la e ela teve tempo de sobra, para preparar as despedidas. A carta, disse-me, já está escrita há muitos anos, mas nunca teve coragem de a enviar. Não sei o que diz, não abri, mas também não quero saber exatamente quem é você, nem o que fez à minha mãe. Por favor, leia-a lá fora e… agradeço que não volte.
Derrotado, consciente de ter estado a falar com o seu próprio filho, abandonou a capela, sentindo dezenas de olhos nas costas. Lá fora, atravessou o olhar azedo de Pedro, envolto em baforadas nervosas de fumo, mas seguiu em sentido contrário, para evitar retomar uma discussão velha de quarenta anos.
Sentou-se num dos bancos de pedra, oculto das vistas de quem circulasse por ali e abriu o sobrescrito, que revelou uma cola ressequida e soltou pequenos grãos de pó. Lá dentro havia uma folha escrita e uma fotografia de Eduarda, a perder cor e ligeiramente desenquadrada, mas linda como ela era há quarenta e muitos anos. Os olhos aparentavam ter estado a chorar, mas era ela, a mulher que sempre amara. É verdade que a traíra algumas vezes, que ela descobrira uma e outras não, mas ela perdoara sempre e retomavam a relação ainda com mais força que antes.
Foi numa dessas alturas que ela se fora. Tinham discutido por causa de uma colega do emprego, a Lurdes, mas fizeram as pazes. Uma vez mais ele tinha prometido que não teria mais nada com ela. Dois dias depois, Eduarda foi-se embora, sem uma palavra; quando ele regressou do emprego, simplesmente todos os vestígios da presença dela haviam desaparecido.
Nos dias seguintes iria aumentar o desespero, à medida que as colegas de trabalho diziam que não a viram e que já não ia ao emprego há uns dias. Por fim, procurou Pedro, que o recebeu com “quatro pedras na mão” e lhe disse que a irmã estava bem. Bem melhor agora, que estava longe de João. Não queria vê-lo mais e pedia que não a procurasse.
Inicialmente, ainda pensou seguir o irmão, ou mandar segui-lo, para perceber onde ela se acoitava, mas depois, o orgulho foi mais forte e achou que ela haveria de voltar. Mas à medida que o tempo se passava, foi-se deixando abater até que um dia, bebido além da conta, foi fazer uma cena à casa de Pedro e acabaram à pancada. A mulher dele chamou a polícia e João foi proibido de se aproximar dele. O orgulho e a vergonha fizeram com que nunca mais a procurasse.
Ao retirar a carta de dentro do sobrescrito parecia sentir já o peso da acusação sobre ele.
A folha estava amarelada e datava de três anos após o ter deixado. Estava escrita a esferográfica azul, naquela caligrafia tão feminina que ela tinha e rezava assim:
“11 de abril de 1991
João, meu amor.
Penso que ainda te posso chamar assim, porque, apesar de tudo, o meu amor por ti é que me levou a tomar a atitude que tomei. O problema principal é que tu não consegues ter apenas uma mulher e eu não consigo deixar de te perdoar… e fico a odiar-me por isso.
Cada vez que me olhas com os teus olhos de anjo, me pedes perdão e dizes que não se volta a repetir, eu sei que é apenas um intervalo. Por trás desse olhar doce, há um coração volúvel, que, por muito amor que me tenha, não se consegue preencher só comigo.
Só agora, sem te olhar nos olhos e quase três anos depois, me sinto com coragem para te dizer o que me vai no coração. Temo, porém, que te sintas encorajado a procurar-me e, uma vez mais, me faças cair na teia dos teus encantos, onde eu sei que sou enganada e não me importo. Não o faças por favor.
Casei com um homem bom e companheiro, que não teve qualquer pejo em cuidar do teu filho, como se dele fosse. Sim, eu estava grávida quando me vim embora e agora estou novamente, desta vez deste homem puro, que não me vai trocar por outra na primeira oportunidade.
Foi-me insuportável, depois de me garantires que não tornavas a sair com a Lurdes, eu descobrir, sem querer, que continuavas a fazê-lo. Só que desta vez, não precisei que me dissessem, vi-o com os meus olhos e tens a prova na tua mão.
Recebe um beijo desta que te ama e continua a tua vida, livre das amarras que te prendiam a mim, preenchendo o teu coração com quantas mulheres conseguires.
Sempre com muito amor, Eduarda.
PS: Depois de muito pensar, decidi não te enviar esta mensagem, não quero correr o risco de que me faças destruir este casamento. Talvez um dia me decida a dar-ta, quando já for tarde demais para me quereres, ou eu a ti.”
Sentiu-se atordoado com a catadupa de informação que recebera, ela não o deixara porque tinha outro, ou porque não o amava, mas porque sabia que estava a ser traída novamente. A prova em sua mão?!?
Olhou de novo a fotografia mal-enquadrada da bela Eduarda e percebeu que, em segundo plano, ele próprio e Lurdes, beijavam-se, acoitados no umbral de uma porta.
Manuel Amaro Mendonça
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