O quarto menor da casa
era reservado para as visitas. Apenas a cama e um velho baú de madeira,
reforçado com tiras de metal, compunham a mobília. As alças do baú já não
existiam, sobraram apenas os sinais do encaixe. A chave ficara perdida em algum
lugar, nas muitas mudanças. Colocado sobre pilhas de tijolos, que o erguiam do
chão, ficava protegido das constantes lavadas do piso. E guardava segredos. Ali
ainda ficavam umas poucas vestes da avó, trazidas de além-mar. Acomodava velhas
cobertas feitas no tear, roupas de dançarina, xales enormes, o pente com o véu.
E as castanholas.
O deleite da menina era
revirar aquilo tudo. Perdera a conta de quantas vezes havia realizado o mesmo
ritual de desdobrar e dobrar as peças, passar os dedos pelos bordados, espetar
o pente nos ralos cabelos, arrastar o véu e os xales pelo chão. Sempre sob o olhar saudoso e atento da avó.
Um dia, percebeu que,
sob as pesadas cobertas, havia um embrulho. Curiosa, quis saber do que se
tratava. A avó, pacientemente, contou que eram sementes de flor-de-capitão, e recomendou
que a menina não mexesse ali, pois elas não poderiam ser plantadas, nunca. As
sementes tinham sido dadas pela comadre da avó, com a sugestão de que fossem
semeadas no entorno da horta. A florada traria borboletas, abelhas e as
hortaliças ficariam mais viçosas e saborosas. Mas, depois de uma conversa com o
avô, ficara terminantemente proibida a semeadura. Irritado e em desacordo, ele
havia falado que aquilo era uma praga, que infestaria as plantações, as
pastagens. Enfim, era uma ordem: as sementes não poderiam ser espalhadas.
A menina, pouco
convencida, fechou o baú. Foi para o terreiro, brincou, chegou mesmo a esquecer
do embrulho sob as cobertas. O dia passou quente, mas a tarde começou a ficar
carrancuda. Enormes nuvens espalhavam-se pelo céu, nuvens negras. E, junto com
o baixar do sol, veio a lembrança das sementes.
Correu até lá.
Aproveitou que a avó estava ocupada com a cata dos ovos, distante dali, abriu o
baú, retirou tudo com muito cuidado e encontrou o saco de papel abarrotado de
sementes. Pegou o pacote, colocou-o no chão, voltou as roupas no lugar, tudo
arrumadinho. Abraçou as sementes, olhou de um lado, do outro e saiu em
disparada antes da chegada da avó.
Lá fora, o tempo havia
fechado por completo. Trovões, relâmpagos. Começou a ficar espantada. Queria
abrir o pacote, mas precisava voltar para casa. Andou um pouco na direção do
cafezal, ajeitou-se sob a saia do pé de café e começou a desembrulhar as
sementes. Eram muitas, excessivamente frágeis, parecidas com minúsculas folhinhas
secas.
Um relâmpago intenso
clareou o céu, um trovão ensurdecedor ecoou e a menina, de susto, quase engoliu
a língua.
- Tinhoca! Tinhoca!
Anda menina! A chuva vai ser braba!
De longe, as vozes da
mãe e da avó gritavam o nome dela. Precisava ir, e precisava guardar as
sementes! Como?!
Não teve saída.
Acomodou o embrulho no tronco do pé de café, planejando que voltaria na manhã
seguinte para buscá-lo. Feito isso, saiu desembestada para casa. No caminho, o
vento a deslocava do chão. Bastou colocar os pés no alpendre, a chuva veio
feito dilúvio.
À noite, deitada,
imaginava como iria secar e embalar as sementes para guardá-las novamente no
baú. E, arquitetando, conjeturando, dormiu.
Acordou com o mugido do
gado no curral. Correu para a porta da cozinha, a chuva havia parado, a umidade
cobria tudo. Mal trocou de roupa, passou a mão num embornal e rumou para o esconderijo
das sementes.
Não havia pacote, não
havia sementes. Vasculhou tudo, andou por várias fileiras de pés de café, pelos
carreadores. Nada. Tudo era barro vermelho, lama. A chuva de vento varrera toda
a roça, desfolhara o cafezal.
E as sementes?! Como
explicaria?
Ficou pensativa por
alguns dias. Depois, esqueceu...
E os dias corriam. A
menina não teve mais vontade de mexer no baú. Quando lembrava, empurrava a
ideia. Nem passava pelo quarto.
As chuvas se foram, o
sol reinou escandaloso, as plantas pareciam ainda mais verdes, as flores
coloriam tudo. As flores?!
- Tinhoooooooooooca!!!
Regina
Ruth Rincon Caires
0 comentários:
Postar um comentário