Natércia falava
entredentes, para não me aborrecer: “Isso é livramento… Deus tenha piedade…
Maria, passa na frente!”. Claro, escutavam-se os bodejos de sua cisma por minha
dita incúria com os afazeres domésticos; por não ser obediente; por não querer
seguir ao Senhor.
O fato de ela ser beata e
eu ateu não mexeu muito, por anos, nosso jeito de viver, talvez pelo bem-querer,
por costume ou preguiça de mudar – ela no canto dela, e eu no meu; até o
surgimento dessa maldição de vírus, que nos pôs cara a cara, [praticamente] todos
os dias, durante três meses consecutivos. Pensava que daria merda; que a panela
de pressão, à qual fomos forçosamente colocados, ia estourar, mais cedo ou mais
tarde.
E houve um grande erro de
estratégia de minha parte: desleixado, confesso, não me atinei para a crescente
paixão por minha salvação – e, por conseguinte, sua salvação. Ou seja, Natércia
mergulhou, progressiva e cegamente, nos dogmas da igreja por minha causa – por
favor, não posso mais me penitenciar pela falta de filtro de Natércia; de um
suposto dom natural (se é que existe) de saber se safar de roubadas.
Pelo que sei, pelo que a
família dela contou, Natércia sempre foi um cordeirinho – aí, no sentido
estrito da palavra, casta, pura, impenetrável em suas particularidades. Para se
ter uma ideia, não foi possível saber, nesses vinte anos, qual é o seu
principal dilema, se acata mansamente as minhas vontades e, quando está
acabrunhada, ou desgostosa da vida, se debanda para a igreja – é o seu refúgio;
entendo, todos nós temos refúgios.
Imagino que pouco ou nada
mudei. No entanto, é verdade que, à medida que Natércia ia se enfurnando na
igrejinha, passando praticamente mais tempo lá que cá, com a impertinente
desculpa: “Sou voluntária, benzinho, serva de deus; preciso ajudar o padre
Tony”; o desgosto foi aumentando em mim; as dúvidas; as incertezas quanto ao
nosso futuro.
Padre Tony se intrometeu
nessa história em meados de 2015. Era, depois de “Jesus” e “Maria”, a palavra
mais relatada em minha casa. Cada conto, cada historieta, vinha carregada de
Tonys. Peguei abuso do cara, dado o exagero. Não era ciúme, nem nada – ao
contrário do que seu risinho oblíquo dava a entender. Eu não suportava a tal
figura brasileira, descendente de índio, certamente, assim como eu, com nome
americanizado. Não é verdade que padre ou freira pode mudar o nome quando entra
na vida religiosa? Vi isso em algum lugar. Padre Tony, que depois descobri ser
Antonielson, quem sabe tenha preferido o codinome para não ser desconsiderado
pelos fiéis – não me conformo, não tem justificativa; usasse, então, Nielson,
em homenagem ao pai ou avô; o que seja, menos ter nome de cantor brega da
década de sessenta, setenta, imitação barata e pelego ianque.
Um dia, cansado da
conversa de Natércia e Maria, a vizinha, de onde só se ouvia padre Tony isso,
padre Tony aquilo, empurrei a porta emperrada da cozinha, com tanta força – óbvio,
involuntária –, que Maria se estabacou no chão. Levantei-a entre desculpas;
sinceras desculpas. Perguntei, enquanto a mulher olhava assombrada para mim,
coçando o cotovelo e choramingando, se não podiam mudar a estação do rádio e
sintonizar em outra vibração, menos chata. As duas me olharam confusas, caras
de desentendidas – “oi, é comigo?!” –, pelo que fui obrigado a ser ríspido e
direto: “Parem de falar desse Tony! Ele é um deus, por acaso? Já não aguento
mais!”. “Benzinho, não fale ‘esse’ Tony; é o nosso pastor, um homem de Deus”.
Não me contive, mais uma vez, e bati à porta; pensei numa estratégia para vedar
quaisquer brechas que porventura existissem entre a cozinha e a sala.
Nem lembro quanto “tá
repreendido; Maria, passa na frente!” ouvi. Saí zonzo, enjoado da cara de Natércia, de
recriminação, e pensando no engodo em que havia me metido, e como o caldo
estava engrossando, rápido – decerto, ela também não suportava a minha
insubordinação.
No período inicial de
quarentena, Natércia organizava terços virtuais, pelo WhatsApp, inclusive
puxados pelo dito cujo, para um séquito sequioso de mulheres lamuriosas,
aflitas nos infinitos pedidos a um deus surdo. Não paravam de gritar e chorar,
praticamente em transe. O sentido eu não sei, se, pelos meus estudos, deus é
onisciente, onipresente.
Não podia mais conversar
com Natércia, travar uma discussão crítica, que ela vinha com: “São os
desígnios de Deus”; “Ninguém contesta a vontade de Deus”; “Ele quer assim,
então será”, etc. e tal.
Já próximo aos cinquenta
dias de isolamento, ela resolveu sair para além dos pontos habituais, farmácia
e supermercado, e se aventurou a ir, de ônibus, antes que eu acordasse –
portanto, saiu sem avisar, e de fininho –, para a residência do padre. Passou
toda a manhã, trazendo o almoço num marmitex vagabundo; dizendo que teria ido
ajudar o padre, que estava sem nenhum funcionário, todos doentes; ainda,
garantiu que o padre, amparado pela graça, não estaria doente, de forma
nenhuma.
O padre ligou
insistentemente dois dias depois. Notei que Natércia se aperreava; preocupada
mais que comigo. Vi, de soslaio, a sua cara de susto e, ao passo que tentava
acalmá-lo, pegava o terço e o levava ao coração: “Você vai ficar bem, com os
poderes de Deus! Isso não é nada; Deus já operou o milagre!”.
Saiu do canto como se
nada tivesse acontecido. Porém, a denunciava a sua pálida cara. Perguntei qual
era o mistério: “Não há mistério algum, benzinho! O padre está angustiado,
porque está só…”. Fez que falaria mais, mas, abruptamente, desistiu. “Diga,
diga! Não me esconda nada!”. Natércia começou a chorar. Ajoelhou-se, quase aos
meus pés; e chorou por cinco minutos: falou que o padre poderia estar acometido
de Covid-19. Não falou mais; evidentemente, intuí que poderia estar nessa
tabocada.
Boboca, colocou-nos em
patente risco, com a cegueira de uma toupeira e o cérebro de ervilha. Quantas
vezes falei para não extrapolar; que o veneno para o incauto é forte – ou a
morte. Veio na pior hora. Estávamos, sim, todos com Covid-19.
Agonizávamos, cada um no
seu quarto. Eu, um pouco mais forte, ainda batia na sua porta três ou quatro
vezes ao dia, enquanto ela, mesmo sem forças, continuava a rezar. Preparava o
seu aerossol. Dava-lhe muita água, suco de laranja; remédios para febre e
antigripal. Deixava, em sua porta, sopa – ou, estando mais disposta, chamava-a
para almoçar. A minha vontade era de sacudi-la, para recobrar a vida. Devíamos
resistir.
De mim, ninguém se
lembrava; elucubrava o trágico abandono. Até que apareceu o meu sobrinho Artur,
que, sendo médico, resolveu tomar a frente da situação. Vendo que a taxa de
oxigenação de Natércia era baixíssima, mandou-a direto ao pronto-socorro e para
a UTI. Lutamos dois dias por uma vaga. Enfim, quando conseguiu, restava pouco a
fazer. Artur me pediu para ser forte; para me preparar para o pior.
Senti falta de Natércia.
Algo que imaginava não ter mais, o coração, batia ao lembrar de seu rostinho
angelical, que ainda guardava os traços da nossa linda juventude; a voz serena,
o olhar tranquilo, as palavras poucas e certeiras. Seria amor, se é que posso
chamar assim, maduro, de cuidado e de consideração. Afinal, Natércia sempre
esteve ao meu lado, mesmo não concordando em tudo comigo.
Dessa feita, sem saber
também que possuía glândula lacrimal, chorei por exatos dezessete dias, várias
vezes, até Natércia voltar à sala de tratamento semi-intensivo, sob os cuidados
de meu querido Artur.
Não possuindo qualquer
sintoma ou resquício da doença, com a autorização de meu sobrinho, fui ao
hospital, carregado de prudências. Natércia não podia falar; estava entubada,
com vários fios espalhados pelo corpo. Ela simplesmente atendia pelo olhar,
expressiva, como se quisesse me perguntar algo e eu não queria imaginar que
fosse algo sobre Tony, aquele sujeito com nome de cantor de banda de pagode. Assim,
conversamos longos minutos pelo olhar, suficientemente pelo olhar; e percebi
que perguntava por mim, queria saber de mim, se estava bem.
Nossos tempos eram exiguíssimos;
havia horários de visitação. Contudo, dado o desconforto da pandemia, só
consegui ir duas vezes na semana crucial, intercalando os horários. E mais
Natércia ganhava corpo, vida; dava para ver pela cor da pele, pelos olhos,
sobretudo. Mais vinte dias e, felizmente, foi liberada, sob uma chuva de
aplausos da equipe médica.
Fomos para casa.
Tocamo-nos como não fazíamos há anos. Senti sua pele na minha, o toque
transcendental que nos uniu, como naquele fim de tarde de 23 de março de 2000.
Natércia dava indícios de
que, daqui para frente, seria só minha.
2 comentários:
Gostei demais...Parabéns. Tenho apreço pelo dia 19(data em que nasci). Fez uma promessa literária ao... Santo Expedito?! Rss
Amei!
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