Era o primeiro dia de liberdade
após o confinamento obrigatório e Mariana apressou-se logo a aproveitá-lo.
Durante o longo período de quarentena meditara muito a sério no modo como até
então passava os seus dias e tomara algumas decisões importantes para o futuro.
Assim que tudo acabasse, iria mudar de vida!
Fizera até uma lista com
os pontos mais importantes a cumprir religiosamente:
1)
Dar um passeio todos os dias, curto ou longo
não importava, quer estivesse ou não muito ocupada com o trabalho.
2)
Falar com vizinhos, pessoal das lojas, pessoas
em paragens de autocarro ou cafés, enfim, ter pelo menos uma conversa por dia
sem ser pelo telefone ou computador.
3)
Retomar os almoços de domingo com a
família, recebendo à vez os filhos e respetivas famílias.
Era estranho a quarentena
tê-la afetado tanto. Viúva, trabalhava em casa há anos e desde que os filhos
tinham partido, primeiro para os estudos e depois para as suas próprias vidas, vivia
bastante isolada. Inicialmente ainda saía bastante para contactar lojas em
busca de clientes ou para entregar encomendas, mas desde que um dos filhos
criara uma página de Internet com as peças de artesanato que criava e vendia,
reduzira as saídas a uma ida semanal aos Correios do bairro, altura em que
aproveitava para fazer algumas compras, poucas, já que recebia quase tudo em
casa.
Ainda mesmo durante os poucos
anos do casamento, e sobretudo desde que enviuvara, fora-se distanciando, sem
mal se dar conta disso, das poucas amigas que tinha, reduzindo os contactos a
uns telefonemas esporádicos ou, mais recentemente, a meras mensagens de telemóvel.
Também o contacto com os
filhos se foi espaçando, casados e com filhos tinham vidas muito ocupadas e com
o passar dos anos descobrira que pouco ou nada tinham em comum. E apesar de
adorar os netos, estes ainda eram pequenos e o barulho e agitação que pareciam
acompanhá-los sempre faziam-lhe uma certa confusão, habituada como estava ao
silêncio e sossego do seu pequeno apartamento e da rua calma em que vivia.
Se lhe tivessem
perguntado no início de tudo isto se iria ter problemas por ficar fechada em
casa, diria imediatamente que não, sem a menor hesitação. Que diferença lhe
faria cortar uma saída por semana? Nada lhe faltaria, habituada como estava a
comprar pela Internet. E com a pausa inevitável nas vendas por não poder fazer
entregas, teria finalmente tempo para planear novas peças e dedicar-se a experimentar
um novo tipo de artesanato que tinha há muito em mente. E podia também ir
adiantando serviço, aumentando o stock das suas peças mais populares para não
ficar assoberbada quando tudo recomeçasse. Sem falar em pôr finalmente o sono
em dia, desde que as suas peças se tinham tornado mais conhecidas sofria de um deficit
permanente, o dia nunca tinha horas suficientes para tudo e eram sempre as
horas de descanso que sofriam.
Mas a realidade fora bem
diferente. Talvez porque sempre fora um pouco do contra, saber que não podia
sair causava-lhe ansiedade profunda. A casa, que sempre lhe parecera
acolhedora, um verdadeiro ninho onde adorava passar o máximo de tempo possível,
surgiu-lhe de repente como uma prisão, uma caixa claustrofóbica onde se sentia
sufocar. A televisão, que suspirava por nunca ter tempo de ver nada, tornara-se
entediante e uma perda de tempo. O monte de livros que aguardavam há anos que
tivesse um tempinho para os ler continuavam quase tão intactos como dantes, folheara
apenas alguns, logo desistindo por falta de interesse. E os projetos novos?
Nada fizera, nem novas técnicas, nem reforço do stock.
Passara simplesmente os
dias a andar de um lado para o outro, sem ter sossego onde quer que se sentasse,
irrequieta como nunca o fora, nem em miúda, sem se conseguir concentrar em nada.
Nem o sono pusera em dia, agora que podia dormir à vontade sofria, pela
primeira vez, na vida de graves insónias que a faziam passar a noite a
revirar-se na cama sem arranjar uma posição cómoda.
Mas agora que já se podia
sair, embora com restrições, ia ser tudo bem diferente. Sim, iria pôr em
prática a sua lista e começaria logo hoje, o primeiro dia de liberdade.
Ainda não eram 8 horas e
já estava na rua, a caminho de uma pastelaria por onde passava frequentemente
sem nunca entrar e onde decidira tomar o pequeno-almoço. Mal se viu finalmente fora
do prédio, respirou fundo e começou a andar a passos largos, apesar de não ser
longe. Os primeiros minutos foram tudo o que sonhara. Mas depois o som dos
carros em hora de ponta, as buzinadelas, o bulício das ruas, o ter de se
desviar vezes sem conta de outros peões de ar apressado, a caminho sabe-se lá
de onde, recordaram-lhe as razões de não gostar muito de sair. E foi com alívio
que entrou finalmente na pastelaria, infelizmente a abarrotar e com um nível de
ruído que excedia certamente os limites legais.
Uma vez sentada, o que acarretou
uma longa espera por entre empurrões e cotoveladas, tentou pôr em prática o
segundo ponto da lista metendo conversa com o empregado que a serviu. Mas o
movimento era muito e as suas tentativas caíram literalmente em ouvidos moucos.
Teve até de devolver a torrada que pedira com manteiga e que veio seca.
Olhou à volta para ver se
teria mais sorte com as mesas vizinhas, mas não viu ninguém que parecesse ter
disponibilidade para dar dois dedos de conversa, estavam todos concentrados nos
respetivos telemóveis, mesmo os que estavam claramente acompanhados. Para não ser
a única a olhar para o ar, tirou o seu da carteira e fingiu que o consultava
enquanto comia.
No trajeto de regresso a
casa, tendo desistido de um passeio mais longo por ter ficado com uma tremenda
dor de cabeça e uma certa azia imediata devido ao galão quase frio que tomara,
esforçou-se apesar de tudo por observar o que a rodeava na esperança de passar
uns momentos de convívio e averbar o segundo elemento da sua lista. Mas só via
pessoas azafamadas, de rostos fechados e olhos no chão ou a falarem ao inevitável
telemóvel. Ao entrar no seu prédio, teve a sorte de encontrar a vizinha do
andar de baixo, que chegava ao mesmo tempo carregada de compras. Mas meia dúzia
de palavras bastaram para lhe recordar que nunca se tinham dado bem e que
sempre a achara uma idiota convencida.
E foi com um suspiro de
satisfação que entrou em casa, na sua bela, confortável e acolhedora casa,
jurando não voltar a repetir tão triste experiência.
O terceiro ponto da lista
foi o que mais durou. Cada um dos quatro filhos teve direito a dois almoços
dominicais, preparados a rigor como no tempo em que o marido ainda vivia e insistia
num convívio dominical de acordo com as tradições da sua família. Gostou de os
ver, claro, aos netos sobretudo, apesar de nada ter para lhes dizer nem eles a
ela. Mas quando chegou o momento da terceira ronda arranjou a desculpa de uma
gripe oportuna para interromper a nova rotina. E passadas umas semanas sem que
a “gripe” passasse, foi um dado adquirido para todos que se voltariam a ver
como dantes, esporadicamente e por pouco tempo.
E a vida voltou ao
normal!
Luísa Lopes
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