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terça-feira, 23 de junho de 2020

DRIBLES DO PASSADO



                                                                              

                                                                              
 A igreja era modesta, miúda, suficiente para abrigar os fiéis. Uma capelinha. O restante da praça, área imensa, servia a todos os moradores. Ali se juntavam, aproveitando o sol da manhã, colocavam a conversa em dia, faziam pequenos negócios, e, na parte da tarde, aquela terra batida, com pouca areia solta, pertencia aos moleques. As peladas aconteciam. 
Todas as crianças da vila frequentavam a escola de manhã. Depois da aula, bastava o tempo de tirar uniforme e engolir o almoço, os pequenos iam brotando feito pipoca nas ruas, nas esquinas, num converseiro danado. O bando, adensado, discutia os times, reclamava da pegada do dia anterior, traquinava novas jogadas. Levava um bom tempo até tudo se ajeitar.
Todos descalços, as botinas só eram usadas na escola. Os times dividiam-se: de camisa, sem camisa. E eram camisas de botão. Não existiam camisetas para crianças, apenas os adultos as usavam sob as camisas. Cavadas. O espaço da trave, que geralmente era medido por cinco passos, motivo de muita briga, ficava delimitado por botinas regaçadas recolhidas do lixo. O gol já havia sido balizado por tijolos, paus, pedras. Depois de muitas cabeças de dedo esmigalhadas, optaram pelas velhas botinas. As passadas eram motivo de muita discórdia. O goleiro reclamava que a perna do contador era grande demais, o artilheiro queria que o mais alto da turma fizesse a marcação. Era um tal de puxar o sapatão para lá e para cá...
A bola era de meia. Bola de capotão era artigo de luxo que só aparecia quando chegava algum primo distante.  Assim mesmo, só podia ser usada se o primo escolhesse o time, o que não agradava a molecada. Os meninos da cidade grande eram sem ginga, sem malemolência, sem contar que as chuteiras espantavam os pés dribladores dos moleques da vila.
A cada semana, a bola era revestida com velhas meias, catadas nas casas. Material cada vez mais escasso.
E, sob sol escaldante ou chuva mansa, as peladas eram sem fim. Interrompidas apenas quando os raios cortavam o céu e os trovões pareciam tremer a terra. Aí, a correria era tanta que nem os sapatões das traves eram recolhidos. E quantas camisas ficavam para trás! Ai! E quantos puxões de orelha...
As crianças nem percebiam o tempo passar, os meses, os anos. Tudo tão simples e bastava. Satisfazia, era prazeroso.
De repente, um novo pároco chegou. Por inúmeras vezes, as crianças o avistavam na porta da igreja, com as mãos em conchas protegendo a vista do sol, olhando de um lado, olhando de outro... Nem imaginavam as caraminholas que estavam sendo urdidas dentro daquela cabeça.
Não demorou muito e a notícia se espalhou. O padre decidira fazer uma igreja do tamanho da praça. De ponta a ponta!
Os meninos, de início, ficaram assustados, mas esqueceram. As peladas continuaram. Continuaram até que um dia, ao chegarem na praça, a escavação estava iniciada. Muitos pedreiros, munidos de pás, trenas, estacas, ocupavam a área do campinho. Dois caminhões carregados de tijolos estavam alinhados na beirada do terreno.
Desapontados, os meninos foram se esgueirando pela velha igreja, calados. Caminhavam e olhavam, com tristeza, a terra vermelha sendo retirada das valas. O padre, na porta da igreja, nem percebeu a decepção das crianças.
Naquela tarde, tudo ficou estranho. Nem havia burburinho, silêncio cavernoso.  Não houve escolha de time, não houve onde colocar os sapatões, não houve medição... Tudo quieto.
Passados alguns dias, outro canto foi arranjado para as peladas. Ficava na baixada, um descampado de capim verde. Sem a menor graça.
E a igreja?! Durante quatro anos, com muitas festas, quermesses, leilões, os fiéis buscavam recursos para erguer a igreja do pároco megalômano.  E ainda bem que a capelinha foi mantida dentro do esqueleto suntuoso da construção. As paredes começaram a ser erguidas em toda a volta do quarteirão, descomunal, um colosso. Não havia material que bastasse para a construção, um despropósito.
Talvez pela visão fantasiosa, pela ambição exacerbada e majestosa do pároco, o bispado entendeu certa patologia naquele empreendimento. Então, o padre foi substituído. Na vila, como herança, restou o esqueleto vermelho, inacabado e inconcebível, da catedral que nunca foi.
Os meninos poderiam ter o campinho de volta. Não quiseram. O encanto, para eles, havia passado. Estavam crescidos.


Regina Ruth Rincon Caires


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