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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Ah, se eu pudesse.

Minha mãe queria que eu fosse médico, mas teve a sabedoria 
de jamais interferir no meu destino. 

Um dos primeiros brinquedos que tenho 
lembrança foi uma maletinha de médico, com estetoscópio, 
seringa, espelho de refletir luz, pinça, tesoura, martelinho 
para bater no joelho, tudo de plástico inocente para uma 
criança. E saía eu auscultando e receitando chá 
de carqueja, minâncora, emplastro Sabiá, maravilha curativa
e Sabão Aristolino a quem passasse na minha frente, fossem
avós, tios, babá, cozinheira, primos e coleguinhas da escola. 

Isso durou pouco e minha mãe, apesar do seu desejo 
oculto, não ligou muito por eu ter abandonado a maletinha 
no fundo do baú da infância. Logo me interessei por 
outras coisas e no fim da adolescência já era publicitário, 
redator, atividades que me levaram a diretor de criação, 
executivo de agência de propaganda, roteirista, escritor 
e professor, coisa que sou até hoje. Com muito orgulho.

A única vez na vida em que me aproximei de algo que 
sugerisse uma atitude médica, foi nas enchentes de 1967
no Rio. Era escoteiro e meu grupo se apresentou como 
voluntário numa escola municipal transformada em 
acolhimento para desabrigados. Num daqueles dias caóticos, 
um médico me convocou para ajudar uma velhinha tuberculosa 
a entrar numa ambulância, sem antes discorrer 
um almanaque de cuidados em que deveria prestar atenção. 
Claro que como bom escoteiro, cumpri a missão de luvas e 
um lenço amarrado no rosto. Morrendo de medo que a velhinha 
me cuspisse.

Assim encerrei minha participação na nobre atividade.
E nunca mais fiz nada, além de um ou outro band aid num curativo 
de filho.

Hoje lembro muito da minha mãe, que não está mais aqui. Imagino 
o quanto ela estaria comovida com o trabalho dos médicos nessa 
Terceira Guerra Mundial contra um inimigo sem rosto, sem pátria,
sem causa. E eu também estou encantado e reverente, diante dos batalhões 
de profissionais da Saúde. Seres humanos superiores, desprendidos,
generosos, estoicos, vocacionados, comprometidos, determinados,
missionários, esbanjando conhecimento, consciência da ciência, lutando,
salvando e morrendo nas trincheiras dos hospitais em todos os cantos
do mundo. Comandantes da vida, senhores do destino possível, às vezes 
Golias, às vezes Davi, mas sempre gladiadores em defesa do que 
há de humano. 

Tenho vontade de dar marcha a ré no tempo. Ah, se eu pudesse: 
uma rezinha só, por algumas décadas. E puxar a saia plissada 
da minha mãe, interrompendo seu correr esbaforido para a escola: 
“Mãe, eu quero ser médico sim. Acha minha maletinha.”

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
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