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quarta-feira, 29 de abril de 2020

A Vida Que Eu Quero


Cabelo comprido, desgrenhado e barba de vários dias, com passos inseguros, o homem arrastou-se pelo meio da esplanada. Aparentava uns sessenta anos e envergava um blusão bege sovado e umas calças de ganga, que já tinham conhecido melhores dias, terminando numas sapatilhas de pano, sujas e rasgadas. Para dar um pouco de dignidade, trazia debaixo do braço um jornal, dobrado, como se o fosse ler.
O empregado do café reconheceu-o e deixou-o passar pela sua frente, após o qual exibiu uma careta mista de tristeza e desprezo, acenando negativamente com a cabeça.
O vagabundo dirigiu-se ao funcionário que se encontrava na caixa, atrás do balcão, que exibiu uma expressão contristada, assim que se apercebeu da sua presença.
— Bom dia senhor António. — Entaramelou o recém-chegado, em ar de gozo, demonstrando uma clara embriaguez. — Ainda tens os jornais de ontem?
— Boa tarde, senhor Fernando. — Corrigiu-o o outro, que aparentava uns trinta anos, baixo, de cabelo curto. No rosto simpático, os olhos pequenos, fitavam o interlocutor com preocupação, respondendo ao cumprimento com a formalidade, que não era obviamente usual.
— Ou isso. — O outro não se preocupou, rematando rapidamente. — Para mim, bom dia ou boa tarde, o que interessa é que seja bom e bom, é poder ter qualquer coisita com que forrar o estômago.
— Não comeste nada ainda? São quase cinco da tarde… — Novamente a expressão de preocupação. — Mas para beber havia…
— Oras! Era o restito de uma garrafosa que me deram ontem, que ajudei a descarregar um camião. — Riu-se o Fernando, levando a mão às costas. — Hoje estou aqui que não posso das cruzes.
— Não te pagaram? — António surpreendeu-se.
— Pagaram pois! — O outro escandalizou-se. — Não te disse que me deram uma garrafa de tinto? Isso e duas latas de atum, a larica é que era muita e dei cabo de tudo à noite.
— Valha-te Deus! — Havia lágrimas nos olhos do mais jovem.
— Que queres que faça? — Justificou-se o mais velho. — O pessoal agora põe o papel todo no papelão, ninguém dá nada para recolher, tenho de correr quilómetros à cata. O sovina do farrapeiro anda a chular-me e cada vez paga menos, além de que acho que a balança está aldrabada.
— Vem. Anda a comer alguma coisa. — António abriu o balcão, para que o outro entrasse para a cozinha.
Enquanto o vagabundo se sentava à mesa, onde normalmente se preparavam as refeições, o outro deu instruções à cozinheira para que preparasse um prego em prato “bem abonado” e trouxesse uma bebida qualquer sem álcool. Depois sentou-se frente ao convidado, ignorando os resmungos da mulher.
 — Mas arranjas os jornais ou não? — Insistiu Fernando, apesar de estar já pronto para comer. — É que se não, tenho de ir à minha vida, procurar noutro lado.
— Sim, tenho ali muitos jornais, acalma-te. — Sossegou-o o mais novo. — Então agora andas ao papel, é?
— Tem de ser! Um gajo tem quem de ganhar a vida, não é? — Afirmou Fernando, convicto.
— É assim que ganhas a vida? Dá para comer?
— Assim, assim. — O velho encolheu os ombros. — É mais para o tabaquito e uns copos, aqui e ali. Comer, normalmente é à noite, quando vem o pessoal da ajuda de rua; uma sopita quente, uma carnita e uns iogurtes. Dá para o gasto. Dantes, andava a pedir, ou a arrumar carros, mas andava sempre com chatices, havia gajos que assaltavam ou riscavam os carros que eu devia estar a guardar e se eu chiava, ainda lerpava por cima. O lixo é mais seguro, embora não possas mostrar que tens guito, nem trazer muito papel junto, ou vem por aí algum cabrão e leva-to.
A cozinheira pousou o prato fumegante na frente do homem, que atacou o manjar com unhas e dentes, enquanto ela se deixou ficar em pé, junto dos dois.
— Ontem, como me emborrachei, — disse com a boca cheia, — esqueci-me da sopa e prontos, lerpei.
— E onde dormes? — Intrometeu-se a cozinheira.
— Por aí! — A refeição desaparecia sofregamente, mas ele não deixava de responder ao interrogatório. — Antes dormia numa casa abandonada, mas deitaram-na abaixo. Fico normalmente na antiga mercearia do Silveira, que está vazia há muitos anos.
— Porque não fazes o que eu te disse já tantas vezes? — Os olhos de António reluziam e sentiam-se os dentes cerrados com força por trás dos lábios finos.
— Nããã! — Recusou o outro. — Que vou fazer agora, da maneira que estou? Já viste o meu aspeto?
— O aspeto pode ser composto.
— Tenho vergonha, não percebes? — Com o prato vazio, o vagabundo impacientava-se. — Que vou fazer agora para casa, para uma família a que não pertenço? Velho, desdentado… derrotado! Vai buscar os meus jornais, que tenho mais o que fazer!
Com as lágrimas nos olhos, António afastou-se, a saber dos jornais.
— A minha vida é esta! Estavam cheios de mim no trabalho, mandaram-me embora, velho de mais para me empregar, novo demais para a reforma, que querias que fizesse? — Reafirmou Fernando, perante a expressão de desaprovação da cozinheira. — Ir para casa viver de subsídios, ou ouvir piadas de que sem o filho não sou nada? Há quatro anos que vivo nas ruas e safo-me bem! Quero lá eu saber de casas cheias de regras e mulheres mandonas! Sempre fui senhor de mim e ganhei o meu sustento! Em mim, mando eu!
— Pelo menos enquanto te derem de comer e não precisares que cuidem de ti! — Exclamou com desprezo a mulher, empurrando-lhe um saco plástico, com duas sandes, para debaixo do braço.
Sem recusar a oferta, o velho saiu da cozinha para a entrada do café, onde recebeu o embrulho com jornais amarrotados.
— Obrigado pela comida! — Atirou Fernando, afastando-se a cambalear.
A cozinheira materializou-se ao lado de António e abraçou-o com carinho, ao ver as grossas lágrimas que lhe corriam pelo rosto. Ele, estático, com a visão do sem-abrigo a afastar-se, moveu os lábios, num sussurro: “Até à próxima, pai.”


Manuel Amaro Mendonça

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