Quando
preparava a torrada do pequeno almoço, no primeiro dia de férias na
terra, o homem cortou-se. Aquele golpe trouxe-lhe à memória um
longínquo episódio que estava enterrado sob camadas de
esquecimento: devia ter já vinte anos quando ele e um dos melhores
amigos de então, tinham pela última vez marcado a canivete os
respetivos símbolos tribais numa árvore junto à ribeira. Era então
a zona de banhos da juventude, sobretudo estudantil, à falta de uma
piscina municipal, só construída trinta anos depois. Recorda que,
por aqueles dias, alguma coisa se quebrou naquela amizade, mas tem
ideia de que nunca chegou a saber o porquê. O que não impediu um
sentimento de culpa que permaneceu. Teria sido uma palavra infeliz?;
um ato mal-entendido? Talvez uma questão de saias. Lembrava-se que
o amigo catrapiscava uma jovem, mas que não levou o intento adiante.
A
tropa chegara abruptamente para toda a gente. Cada um seguiu rumos
diferentes e nunca mais se viram, nem souberam um do outro.
O
homem decide que nessa mesma manhã irá à ribeira, nesta fase de
balanços de vida que atravessa.
Há
muito que o homem não se aventura sozinho por aquele ermo. Vai
contemplando as formas imperfeitas que um falcão desenha no céu
luminoso da manhã de agosto, enquanto caminha. Um ténue halo de
poeira, que só o falcão vê, sobe do antigo caminho dos moleiros. O
caminhante avança resoluto por aquele trilho rural entre muros
baixos, alguns derrubados. Passa muito das dez horas e o calor já
promete torrar cada vivente. Aqui e ali, giestas e saragaços secos
comprimem aquela senda abandonada, até restar quase só uma vereda.
Em tempos, passavam por ali carroças e carros de bois; agora, talvez
só pequenos rebanhos e algum caminhante desavisado.
O
temerário tenciona passar as horas de maior calor no Pego da Azenha,
um troço pitoresco da ribeira que desliza, relutante, a uns três ou
quatro quilómetros da sua terra. Em adolescente gostava de se
refrescar ali, banhar-se, brincar na água. Há quarenta anos, a
corrente estava represada e criava uma piscina natural, com a graça
de estar pontilhada de rochas arredondadas pela correnteza.
Avista
ao longe o vulto de uma criatura que vem na sua direção. Estranha a
presença, sente alguma apreensão. A agricultura está extinta na
zona, a pastorícia está reduzida a cercados onde o gado fica por
sua conta. Quem mais se aventurou por aquele percurso solitário com
o calor a tornar-se já desconfortável?
O
homem toma consciência do total isolamento em que está mergulhado.
Não estava à espera. Apesar de ter sido criado no campo, desde a
partida para a tropa que se tornou um urbano-dependente. Já não tem
familiaridade com o espaço rural, muito menos com os seus
habitantes. Recorda a navalha que todos usam.
Porque
foi lembrar-se disso? Não há nenhuma razão para temer outro homem
que ande por ali. Em alguns bairros arredados dos centros das
cidades, aí, sim, acredita que há que ser cuidadoso. A figura, de
ar envelhecido, talvez devido à barba grisalha, caminha com calma,
mas determinação, ajudada por um pau tosco.
O
visitante abranda o passo, para fazer coincidir o cruzamento com uma
zona mais larga do caminho, em que terá havido um charco no inverno.
Controla o outro de olhar baixo. Avança pelo carreiro que contorna
pela direita a terra seca gretada; o desconhecido pelo outro lado. No
ponto em que estão mais afastados, o homem levanta o olhar, sem
levantar o rosto; o outro para, mirando o oponente, sem se voltar.
O
homem sente um incómodo, um presságio de perigo; parece-lhe
reconhecer aquele rosto carrancudo escondido pela barba. Diria que,
se fosse mais novo, poderia ser ele próprio. Um arrepio
surpreende-o. O olhar do outro é intenso e acusador. Sem palavras,
sem ameaças, aquela presença domina-o com as maiores acusações,
as mais fundas imputações de culpa. Luta para afirmar, garantir,
convencer-se da sua inocência. Em vão. O olhar duro do estranho não
lhe dá oportunidades de fuga.
— Desculpa!
— acaba por articular.
O
olhar do outro desarma, acalma, adoça. Baixa por momentos o rosto,
depois encara o caminho e recomeça a andar, no mesmo ritmo calmo de
antes.
O
homem desaba em si. Sente um grande cansaço. Retira-se para debaixo
de uma azinheira raquítica que por ali está, senta-se encostado ao
tronco e nem dá pelo passar das horas de calor intenso desse dia.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Cruzeiro Seixas, Vencedores e vencidos dos combates cerimoniais,
não datado.
Proveniência:
Coleção Prof. Doutor Rui-Mário Gonçalves.
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