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terça-feira, 16 de julho de 2019

João e Maria

Fotografia: Lee Jeffries

Eu me acostumei a ver os dois sentados no chão, lado a lado, encostados na parede da padaria. Eu descia do carro apressada, retornando do trabalho, para comprar dois ou três pães, um leite, um queijo. E lá estavam eles, no mesmo lugar, todos os dias, como se tivessem sido posicionados ali para uma dessas fotografias intermináveis de estúdio que repetem e repetem uma mesma pose, à exaustão. Ou para uma pintura. Óleo sobre tela. Indigência sobre tela.
João e Maria. A princípio pensei que eram apenas apelidos. Esse jeito leviano de inventarmos nomes comuns para os que queremos manter à distância ou para os que não nos importam de verdade. Mas depois fiquei sabendo que esses eram, realmente, seus nomes. João Eustáquio dos Santos, um seu criado, ele se apresentou a mim num fim de tarde, enquanto me ajudava a colocar no carro a compra feita no varejão da esquina. O senhor aceita que eu lhe compre uns pães e leite?, perguntei sem jeito, pensando se não seria melhor dar algum dinheiro (o velho hábito cristão da caridade medida em bens ou moedas). Ele riu e aceitou os pães e o leite. Agradeceu. Eu entrei na padaria para a compra. Ele me esperou do lado de fora, único lugar considerado adequado aos pobres pelos donos de comércio. Conversamos. Ele me contou que nem sempre morou na rua. Que teve família e casa e uma mulher que tinha morrido daquela doença ruim e cinco filhos que estavam pelo mundo e netos que ele só viu bem pequenos. Estudou um pouco. Mas não gostava das letrinhas miúdas. Números, ah!, isso sim. A sua vocação. Foi motorista. Fichado. Despedido do emprego já quase com 50 anos. Virou camelô. Vendia guarda-chuva, brinquedo, batom. De um tudo, ele afirmou orgulhoso. Mas ficou doente e perdeu o ponto. Eu sou doente das juntas, me contou.  Mancava muito, joelhos tomados pelo reumatismo. As mãos doíam. Doía tudo. Sem conseguir correr, não tinha como fugir do rapa. Os homens chegavam e quebravam tudo com o cassetete. E ele não tinha como repor a mercadoria, diz com os olhos perdidos em uma memória de dor. Perdeu a casa por causa das prestações atrasadas. Não tinha parentes: a mulher já havia morrido, os filhos estavam esparramados pelo mundo afora. Ninguém o acolheu. Foi parar na rua. E começou a beber. Bebeu de cair, de vomitar e de se urinar dormindo. Até conhecer a Maria. 
A conversa acabou. Ele pediu desculpas porque falava demais. Eu gosto muito de conversar, mas a Maria não gosta, disse apontando o queixo para a companheira. Maria Aparecida da Silva, a Maria Muda, como era conhecida pelos comerciantes e lavadores de carro. Trazia nos olhos as palavras que faltavam à boca. 
Com o tempo, descobri que aquela cena se repetia muitas vezes ao longo do dia. João ajudava as pessoas em troca de algum dinheiro ou comida, e de muita conversa. O casal dormia embaixo de uma marquise e sobrevivia de caridade: roupas, cobertas, alimentos e alguns trocados — realidade que faz tempo se banalizou e se tornou invisível para os nossos sentidos cotidianos. 
Tinham, pela aparência, uns 75 anos. Mas as ruas costumam vincar mais cedo as peles. De qualquer maneira, eram idosos. De qualquer maneira, dormiam em cima de um papelão gasto e fino. De qualquer maneira tinham que pedir, que implorar, essa brutalização da dignidade que aos poucos vai quebrando o indivíduo. Comer. Beber. Morar. Coisas simples que não deveriam depender de favores. Não, não deveriam.
Mas hoje não é a barbárie da indiferença social que me preocupa. É alguma coisa mais evidente, mais urgente. Uma falta. Uma ausência. Hoje, não tem João. Nem Maria. 
Tem tragédia. 
Dois bêbados brigaram por causa de um cobertor que algum morador das redondezas deixou para eles. Um deles puxou uma faca. João tentou impedir. E virou alvo da faca embriagada que buscava qualquer corpo. Várias vezes. Maria, desesperada, pulou sobre o agressor. E foi a sua vez de sentir nas carnes magras a lâmina cega e suja do sangue do companheiro. 
Agonizaram um sobre o outro. Sem ambulância. Sem hospital. Sem palavra. Apenas uns panos colocados sobre as feridas por alguém que correu para tentar ajudar. E umas lágrimas desse alguém que os enxergou pelo menos na morte. Mães tampando o rosto dos filhos. Idosas passando mal. Curiosos filmando os mortos. Comerciantes praguejando contra a falta de policiamento nas ruas, para impedir a aproximação “dessa gente” que só arruma confusão. 
Um dia como outro qualquer. Como hoje. Em que a ausência dos dois já faz parte da rotina da rua. Caminhões descarregando mercadorias. Carros parados em fila dupla na porta das lojas, do varejão, da padaria. Carrinhos de bebê circulando nas calçadas que ligam os prédios ao parquinho. Lavadores de carro preocupados em não perder o ponto. Cachorros passeando em coleiras incômodas, farejando o sangue mal lavado no chão de concreto. E eu. Leite e pão na sacola ecológica que me descreve como pessoa evoluída.
O pensamento está em João e  Maria. Na estupidez da vida. Na rapidez da morte. Na crueldade da miséria. Que irmana assassinos e vítimas num mesmo script perverso.
Olho para o chão vazio onde os dois dormiam e me pergunto se eu poderia ter feito alguma coisa. Talvez. E me agarro a esse talvez com a complacência dos que sempre fogem. Entro no carro apressada. Pensando na briga que acabou matando os dois. Uma briga que nem era deles.
Não sei quem ficou com o cobertor.

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


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