A
minha mãe é alegria. E sabor. Ela junta açúcar num pratinho com
requeijão ainda quente que o meu pai acabou de trazer. Delícia!
Colhemos figos amarelos a escorrer um pingo de doçura dourada.
Regalo! Vamos à fonte buscar água. Fresca! Eu corro à frente. A
correr, ninguém ganha à Flecha, a cadela. Corro com ela, feliz.
Correr é bom! E andar descalço pelos campos. E nas areias frescas
da ribeira. Pela sombra dos amieiros. E estar deitado no meio da
erva. Ouvindo os muitos pequenos sons do campo. E sentindo os muitos
aromas das plantas. O cheiro a fumo da erva cortada de fresco…
Fumo?
Pedro acorda.
Está
no escritório. Sentado e com os cotovelos apoiados no tampo da
secretária, tinha adormecido por momentos. No cinzeiro, um cigarro
queimado até ao filtro. Olha o relógio. Já passa das seis. Arruma
alguns papéis que estavam dispersos pela secretária, veste o casaco
e sai. Ainda é cedo para ir para casa. Resolve passar pela
tabacaria, para comprar o jornal, antes de se sentar na esplanada do
fundo da rua.
Nada
mais repousante num fim de tarde: uma cadeira, um jornal e um café.
Na
tabacaria, olha os cabeçalhos de jornais e revistas e decide-se por
uma de nome a branco sobre vermelho.
Paga-a
e sai observando a capa. Apresenta o desenho de um cérebro sob um
título que promete revelar tudo sobre a fase REM do sono. Cruza
maquinalmente o passeio e começa a atravessar a rua sem despegar os
olhos da revista. Logo um guinchar estridente lhe assola os ouvidos e
o seu olhar já lhe desvenda a origem. A poucos metros, vem um carro
de rojo, agarrando-se desesperadamente ao alcatrão. Os olhos do
condutor fitam-no aterrorizados, como que a pedirem-lhe o milagre de
se desviar, a tempo, da trajetória do carro. O sol refletido nos
cromados fere os olhos. Os travões gemendo desfazem-se em chispas de
fogo. As pessoas detêm-se de olhos fixos no horror que se desenrola
mesmo ali. Sabem que um homem vai ser atropelado e nada fazem. Algo
as mantém presas. Há movimentos apenas esboçados. Parece que tudo
decorre em grande lentidão. Lentidão apenas aparente. Àquela
velocidade, o carro vai esmagar o homem.
Pedro
dá um pulo na cama.
À
sua frente desenrola-se um acidente do qual ele próprio é o
atropelado iminente. Em escassos momentos, porém, o carro que vem ao
seu encontro desvanece-se e desaparece, deixando em seu lugar apenas
os ferros graciosamente enrolados da sua acolhedora cama.
Pedro
pestaneja, olha em volta, e finalmente fecha a boca, que
possivelmente gritara. Passam-se
os segundos, mas na sua
memória as imagens são nítidas. O carro parece estar ali. O carro,
o chiar dos travões, o cheiro dos pneus, mesmo a cara do condutor
que ele não conhece.
É
difícil acordar de um pesadelo, mas no fim é um alívio. Pedro
respira fundo, enquanto passa a mão pela testa. Da rua chegam-lhe
ruídos de discussão. Levanta-se e vai à janela. Lá em baixo, no
alcatrão, dois homens discutem. Um carro está atravessado na rua e
outro em posição de ter
surgido da lateral. Os rastos da travagem daquele atingem mais de dez
metros. Aí está a explicação do aparecimento e do conteúdo do
seu sonho.
Pedro
volta para dentro, calça os chinelos, alisa o cabelo, e passa do
quarto, onde dormira a sesta habitual dos sábados, à sala onde o
seu filho se entretém com um automóvel de brinquedo e a sua mulher
o recebe com um sorriso.
— O
quê? Já acabaste a sesta?
Ele
beija-a e senta-se. Sabem-lhe bem os sofás macios, confortáveis. A
sala acolhedora fá-lo sentir o contraste com a vivência de há
momentos.
— Nem
queiras saber o pesadelo que tive... Ia sendo atropelado.
— No
sonho!
— Sei
lá se foi só no sonho. Era tão real! Eu ia a atravessar uma rua e
de repente, sem esperar, aparece-me um carro a toda a velocidade.
— Eu,
às vezes, também tenho sonhos horríveis.
— Mas
as coisas estavam tão nítidas, tão coerentes, que eu chego a
duvidar se era só sonho. Ainda me lembro da cara do tipo que
conduzia. E das pessoas que assistiam. Sabes que a coerência interna
das situações é o único indício que costumo tomar como certeza
de que estou acordado.
Pela
mente de Pedro, desfilam novamente as
peripécias do sonho.
Todos os pormenores
permanecem vivos na sua memória: o rodado dos
pneus, o aspeto da rua, o
rosto da empregada da tabacaria, a revista...
— E
a revista
era a Pesquisa.
O engraçado
é que é uma revista
que já não compro há
uns meses. Anunciava nesse número, em grandes letras, “Sono REM —
o organizador da realidade”. Lembro-me bem.
— Não
sei que organização é essa, porque, para mim, isso de sonhos está
cheio de incoerências.
— Talvez
não só incoerências!
Repara que, na maior parte das vezes, o sonho reflete as peripécias
do dia de quem sonha, ainda que sob uma capa surrealista. Posso
sonhar que atravesso a vau um pântano onde outras pessoas chafurdam
e não acho isso estranho. Quando acordo, se me lembrar do sonho e
fizer um esforço de o relacionar com episódios do dia anterior,
talvez me lembre de ter atravessado um relvado acabado de regar a
caminho do trabalho. O terreno empapado está lá; o resto talvez
seja um sentimento inconsciente do que penso do local de trabalho e
de quem por lá se arrasta.
— Hm,
sim! Mas não seria mais lógico sonhares com o local de trabalho,
mesmo, e não com o relvado?
— Talvez,
mas é a maneira como o nosso cérebro funciona. Aliás, os sonhos
incongruentes perturbam-me menos do que aqueles que não distingo da
realidade… Como é que eles acontecem? Sou eu, que estou a dormir,
que consigo imaginar histórias, que nunca vivi, cheias de pormenores
como na vida real? Chegam a ser tão coerentes e semelhantes à
realidade que eu já me tenho perguntado o que é afinal real: o que
vemos aqui, ou o que vemos nos sonhos? Ou ambos? Deixa-me cá
beliscar… Ah! Outra curiosidade. Antes deste sonho, tive outro com
recordações de infância. Esse era uma grande baralhada e já não
me lembro bem.
— Eu
chego a ter quatro e cinco sonhos só numa noite...
— Sim,
mas sabes o que me aconteceu? É que passei de um sonho para outro,
como se passasse
de um sonho para a realidade.
Acordei, pensava eu. Mas era
outro sonho,
percebes? E
olha que estava mesmo
convencido que estava
acordado.
Pedro
fica calado a pensar.
Depois adianta:
— Quem
me diz
a mim que isto tudo não é outro sonho igual ao do acidente?
Entreolham-se.
Pedro belisca-se novamente. A mulher finge que se zanga:
— Então
e eu sou o quê?
— Tens
razão, querida. Tu és mesmo
real. E ainda bem.
Passa-lhe
a mão pelos cabelos e pela face macia, olha-a no azul dos olhos e
beija-a no quente dos lábios, longamente. O miúdo, que brincava com
o carrinho, mas sem perder pitada do ambiente, vem a correr meter-se
entre eles, para não ficar de fora na distribuição de carícias.
Os três estão abraçados e a rir com a brincadeira, quando soa uma
campainha. Ele pega no telefone, mas ninguém responde.
— Deve
ser a porta.
Ela
vai abrir, mas volta logo.
— Não
está ninguém à porta...
Ele
desliga o televisor, mas a campainha continua a tocar sem
interrupção. Entreolham-se todos, com olhares um pouco assustados,
sem trocarem palavra. O miúdo corre a abrigar-se nos braços da mãe.
Olham para todos os cantos da sala, para o teto... O som da campainha
continua, mete-se pelos
ouvidos adentro,
parecendo vir de todos os lados ao mesmo tempo.
Pedro
começa a tomar consciência das cores escuras e pesadas. Depois as
formas aparecem-lhe com mais nitidez. Os seus olhos abrem-se
definitivamente e com eles percorre o aposento: roupa amarrotada numa
cadeira; um poster
de revista na parede; uma mesa com um prato sujo em cima; do outro
lado da cama, um banco com um cinzeiro e um despertador.
O
barulho do despertador é já insuportável. Pedro trava-o
com um murro. Fica a
olhar para ele e para tudo
o que ele significa: trabalho, submissão a horários, salário de
miséria...
— Seis
e meia. Merda de vida!
Senta-se
na cama, encostado à parede. O leito é um colchão de espuma com um
saco-cama em vez de lençóis. Acende um cigarro. Acodem-lhe ao
pensamento imagens do
sonho que acaba de viver.
Detém-se nos sofás confortáveis,
na estante cheia de
livros,
nos quadros, no menino adorável,
na mulher linda e deliciosa…
— Não
querias mais nada: boa
casa, um bom emprego e uma mulher
boa!
Um
sorriso amargo aflora-lhe
a boca. Acaricia a ponta
do travesseiro, sonhador, pensativo.
— Sonhos!
Os
seus olhos percorrem o local
onde poderia estar deitada
uma mulher. «É difícil
viver sem mulher.» Mais
difícil e amargo ainda lhe foi viver com uma mulher em desarmonia.
«Que fazer?» Volta a olhar a miséria monótona do quarto. Não é
preciso beliscar-se. Esta
realidade conhece ele bem.
Ou
não? Afinal, que crédito pode dar ao que, de todas as vezes, lhe
pareceu realidade? Por que aceitar esta, se ela parece tão
desagradável? «Não quero esta merda!», decide. «Qualquer das
outras é preferível.» Acabado o cigarro, estende-se outra vez,
relaxado.
— Que
se lixe!
Umas
três horas depois, sonha que voa por cima do parque da cidade.
Controla tão bem o seu corpo que bastam poucos movimentos dos pés
para se elevar, e pequenas inclinações do tronco para orientar a
trajetória. Acaba por poisar num enorme relvado junto a uma mata.
Desta sai um urso que se prepara para o atacar. Pedro pega num pau e
bate com ele fortemente na cabeça da besta. O animal tem a cara do
seu patrão, que lhe aponta o indicador:
— Estás
despedido!
Pedro
salta da cama com um forte sentimento de angústia. Está outra vez
atrasado. Muito. Lava os olhos à pressa, veste-se num ápice e sai
do quarto a correr. Lá fora, a realidade parece saída de um quadro
de Bosch.
Joaquim
Bispo
*
Este
conto — escrito em 1976 e reescrito em 2016 — foi um dos 15
selecionados para integrar a 5ª edição da Fluxo — Revista de
Criação Literária (páginas 36 a 41):
*
Imagem:
Henry Fuseli, O Pesadelo, 1781.
Instituto
de Artes de Detroit.
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* *
5 comentários:
Continua a escrever.
Um abraço
Continuarei, podes estar certo.
Abraço!
Os teus contos "obrigam-me" quase sempre- logo após os ter lido - a pesquisar na net algo sobre pintura ou escultura, às vezes também literatura...hoje não foi excepção : lá fui eu pesquisar e ver o género de pintura do Bosch, e saber quando e onde e como viveu.Quanto ao Fuseli, nem sequer o conhecia.
Aprecio a tua arte de escrever estes contos e fico sempre a saber um pouco mais.
Abraço
O teu empenhamento em aprofundar o que é referido nos meus contos enche-me de vaidade positiva.
Grande abraço!
Excelente história meu amigo.
Um abraço com a distância COVID.
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