Este
relato começa quase no final da volta que Roberto Gama costuma dar
pelo hipermercado local, ao
fim da tarde, arrastando
o cesto de plástico com rodas que vai fazendo o troc-troc típico no
piso de mosaicos. A certo momento, conferiu o que já levava: uma
piza pré-cozinhada em forno de lenha, um frasco de azeitonas, leite,
tostas, nêsperas...
Para esse dia, chegava, mas, antes de se dirigir às caixas de
pagamento, era altura de passar pelos corredores onde gostava de se
apropriar de algum bem facilmente escamoteável: uma embalagem de
fatias de presunto; uma caixa de preservativos; uma escova de dentes
— tudo mercadorias achatadas e leves. Desta vez, escolheu um
chocolate de leite de uma marca conhecida e, com a destreza do
hábito, meteu-o por dentro da camisa previamente forrada de papel de
alumínio, por causa da deteção eletrónica.
Como
se percebe, esta prática a que ele chamava “taxa de cliente
frequente” era mais um jogo lúdico e rebelde que lhe vinha da
adolescência do que uma manha de falsário. Agradava-lhe uma certa
tensão que sempre experimentava e gostava de pensar que introduzia
uma minúscula, mas real, reposição de justiça de tipo “Robin
Hood” nas relações comerciais que os magnatas das mercearias
impõem ao grande público. Mas sempre sem exagerar, não se desse o
caso de ser apanhado. Dirigia-se já para as caixas, quando deu de
caras com uma antiga namorada no corredor das conservas.
— Roby!
Que surpresa! — quase gritou ela, ao vê-lo. — Moras por aqui?
— Olá!
Há quanto tempo! — exteriorizou também Roberto, em luta mental
para se lembrar do nome da amiga. — Moro ali na Arroja. E tu?
— Moro
em Loures. Vim à Loja do Cidadão e acabei por entrar aqui no Super.
— Que
interessante! Não nos vemos desde quando?
— Eu
sei lá… Para aí há dez anos. Eu devia ter uns vinte e cinco!
Casaste?
— Não;
e tu? Na altura foste atrás dum tipo mais velho…
— Não,
não correu bem. Continuo solteirinha e boa rapariga… Nem sempre
por opção… — riu-se com a graça da queixa.
Nesse
momento, Roberto lembrou-se da tablete de chocolate. Desconfiou que
tinha amolecido. Era natural; havia já um bocado que estava próxima
do calor do corpo. Ainda mais agora…
— Olha,
eu preciso de ir à casa de banho. Ainda vais fazer mais compras?
— Não,
só levo aqui uma lasanha, para logo; e achei barata esta garrafa de
vodka.
A
passagem pela caixa não foi tão rápida como convinha a Roberto. A
dupla tensão fez os seus estragos — começou a sentir nitidamente
uma massa pastosa a escorrer-lhe pelo umbigo.
Depois
de saírem, o problema já não parecia tão grave; só um pouco
constrangedor. Prosseguiram a conversa pelos corredores do centro
comercial, em direção ao parque de estacionamento.
— Roby;
quem havia de dizer que te encontrava aqui! Lembras-te que nos
conhecemos também num centro comercial? E tu não eras de modas…
convidaste-me logo para ir ao teu quarto.
— Bons
tempos! As paródias que a gente fazia…
— Tu
eras muito maluco! Daquela vez que querias no elevador!
— Do
elevador não me lembro; mas quando fomos apanhados no provador da
Zara? — Roberto riu-se com gosto, relembrando o episódio. «Tinham
sido tempos realmente desvairados. Como é que ela se chamava?»
Ela
também se riu, comprazida com as recordações. Praticamente,
saltitava ao seu lado. Para ele, estas lembranças estavam a piorar
sensivelmente a situação. Fechou um pouco o riso quando sentiu que
a pasta de chocolate estava cada vez mais fluida e vencera a
resistência do cinto na cintura. A invasão das zonas íntimas não
era completamente desagradável, mas não era o momento... De
qualquer modo, tinha de se livrar rapidamente da companhia, para
poder compor-se. «Mas, com esta conversa, não é o momento...»
— E
as experiências que tu inventavas… Uma vez arranjaste ovos
cozidos… Outra, chantili… Lambuzámos o lençol todo.
“Ganda” bodeguice!
— Olha
se tivesse sido chocolate!
— Hum!
Cioccolato! — o trejeito de
deleite indicava que a sonoridade
da língua italiana lhe
trazia boas emoções. Sou doida por cioccolato.
Era o que devias ter
arranjado... Até o lambia...
Sabe-se
que os mais brilhantes homens perdem parte da capacidade racional
quando as funções cerebrais responsáveis pelo
pensamento lógico são atordoadas pelas emoções. De um momento
para o outro, Roberto deixou de se preocupar com a tablete
liquefeita que descia pelo seu corpo e vislumbrou uma promessa de
resto de dia
como antigamente. E, antes que o córtex pré-frontal retomasse o
comando, saiu-lhe da boca o convite:
— Lá
em casa tenho
cioccolato…
— Maroto!
E é bom o teu cioccolato?
— perguntou ela, em tom insinuante.
— Do
melhor. Suíço! — abriu-se Roberto em sorriso. — Vou só ali à
casa de banho.
Aproximavam-se
das casas de banho e da escada rolante para o estacionamento, quando
a jovem reparou que as pessoas se viravam à passagem deles. Viu
então que Roberto tinha os sapatos manchados e ia deixando um rasto
de pingos castanhos. Estacou e encarou-o, em pedido mudo de
explicações.
— É
chocolate! — respondeu ele, confrangido, mas o esgar no rosto dela
afastando-se indicava que não tinha sido convincente.
— Olha!
Olha! Amiga! Eu posso explicar — lançou ainda Roberto, ignorando
os olhares de censura que o cercavam.
— Regina!
— respondeu a rapariga, virando o rosto sem abrandar o passo.
Joaquim
Bispo
*
Por
seleção em concurso literário, este conto integra a antologia
“Doçaria Cristal” — páginas 48 a 50 — da Editora Jogo de
Palavras:
*
Imagem:
Mel Ramos, Virnaburger,
1965.
Museu
Coleção Berardo, Lisboa.
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2 comentários:
Recomenda-se que na próxima se fane chocolate branco... claro que a "Favorita Regina" poderá, em situação idêntica, inferir algo que indicie
frustrante precocidade...
Ah!; entendi. Pensava eu que tinha uma mente perversa… :)
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