Casimiro
Lopes começou a suspeitar de que qualquer coisa não estava bem
quando, pela terceira vez, o seu parceiro habitual de ténis,
Francisco Torrinha, deu uma desculpa para não fazerem a partida
habitual. Não jogavam com muita regularidade — talvez de três em
três semanas, muito longe das duas vezes semanais de uns anos atrás,
quando ambos ainda estavam ao serviço da empresa —, mas era o
suficiente para manterem a ilusão e a imagem de jogadores de ténis.
Nem sequer eram grandes praticantes, apesar de jogarem juntos havia
uns vinte anos. O ténis, agora, não passava de um pretexto para
mexerem um pouco as articulações, calcificadas por tanto
sedentarismo, e atualizarem o contacto.
Se,
na primeira “nega”, Casimiro achou normal que o amigo não
pudesse jogar por “ter de levar o carro à inspeção” e na
segunda não pudesse, por andar “com uma dor lombar”, na terceira
achou que as “compras no supermercado” bem podiam ser adiadas.
Entre o surpreendido e o magoado, resolveu que não desafiava mais o
amigo. Ele que telefonasse! Se a questão fosse circunstancial,
Francisco haveria de arranjar um bocado da tarde para jogarem.
Passou-se
um, passaram-se três meses e o telefone não cantou nenhum convite
do amigo. Paciência! Casimiro é que não queria humilhar-se mais.
Podia bem passar sem jogar ténis.
Quis
o fado ou o diabo que Casimiro encontrasse um ex-colega da tropa, o
Henriques, e chegassem à conclusão de que eram ambos jogadores de
ténis a ressacar. E logo ali combinaram uma partida para o dia
seguinte. Aziago dia esse!
Eram
umas dez e meia, quando desceram dos balneários do Jamor para os
campos de terra batida. O Henriques parecia jogar bastante melhor do
que Casimiro, pelo que este se preparou para uma bela tareia. Na
verdade, meia hora bastou para levar 6–2, na primeira partida.
Estavam
a iniciar a segunda, com Casimiro a servir, quando este ouviu uma
voz, seguida de uma risada, que muito bem conhecia. Estacou um
momento, a determinar de onde vinha o som, e percebeu que vinha de um
campo próximo, mas encoberto pelos arbustos de separação. Serviu,
mas fez dupla falta. A seguir, meteu a bola na zona própria, mas um
petardo do outro lado fê-lo ir buscá-la ao fundo do campo. Enquanto
a apanhava, conseguiu espreitar por entre os arbustos e confirmar o
que temia: Francisco Torrinha jogava ténis alegremente com outro
tipo. E como se isso não bastasse, o outro era o Renato, o nojento
Renato, o ex-colega de ambos que tinha das posturas mais irritantes
na empresa. Irritante, manhoso e arrogante. Uma víbora com pernas.
O
resto da partida correu ainda pior do que a primeira, se isso era
possível. O sol queimava, a terra batida vermelha cegava, os olhos
não conseguiam ver com precisão a trajetória das bolas. Quando a
partida acabou com 6–0, Casimiro desculpou-se com o calor e
voltaram aos balneários. Mais do que o calor, Casimiro já não
aguentava a alegria que adivinhava no outro campo. Com o Renato!
O
resto do dia não foi nada repousante para Casimiro. Pensou em mil e
uma coisas que podia fazer, das mais vingativas às mais
conciliadoras. A mais sensata, que acabou por prevalecer, quando,
pelas três da manhã, o cansaço já se sobrepunha à raiva, foi a
de confrontar Francisco com aquela facada nas costas.
No
dia seguinte, foi esperá-lo à porta do infantário, aonde sabia que
Francisco levava todos os dias a neta. Este não podia ter ficado
mais surpreendido com a visita, mas pareceu a Casimiro que ele
tentava disfarçar um ar comprometido:
— Por
aqui a esta hora? Pensei que a manhã era sagrada para ti!
— Isso
é um sarcasmo dos mais reles que já ouvi. Mais reles que isso é
teres ido jogar ténis com o Renato — descarregou Casimiro, sem
conseguir evitar o fel.
— Mas
o que é que estás a dizer? — ripostou Francisco, à defesa. —
Quem é que te disse isso?
— És
capaz de negar na minha cara? Vá, diz; és? — faiscava Casimiro.
— Sim,
fui — admitia Francisco, vendo que não adiantava negar. — E
daí? Qual é o problema?
— O
problema é que somos parceiros há vinte anos e ultimamente tens
andado a evitar-me. E para quê? Para ires jogar com o mete-nojo do
Renato! Com o Renato… Como é que foste capaz?
— O
que é que tem? Calhou! Encontrei-o no supermercado…
— «Encontrei-o
no supermercado» — repetiu Casimiro com voz de falsete. — Se te
aparecesse o “Doninha” do Contencioso, também ias jogar ténis
com ele, não? Agora vais com qualquer um? Não me admirava!
— Ó
Casimiro, qual é a tua? — aborrecia-se Francisco. — Mas então
não posso ir jogar ténis com quem me apetecer? Era só o que
faltava!
— Pois,
podes ir com quem
te apetece, mas
baldaste-te três vezes, quando te convidei. O que é que os
outros têm a mais que eu não tenho?
— Olha,
por exemplo, estão dispostos a ir jogar de manhã, enquanto que tu…
— Eu,
quê? Se for o único período livre, posso ir de manhã. Ainda ontem
fui — descaiu-se Casimiro — Tu é que nunca insististe!
— Ah,
tu podes jogar com outros e eu não posso! É essa a tua ideia de
fidelidade?
— Só
fui porque tu nunca mais me ligaste. Assim, não! Também tenho
sentimentos.
— Ó
Casimiro, não sejas assim! Não tem dado, mas podemos ir jogar um
dia destes.
— Amanhã?
— apressou Casimiro, pela perspetiva de voltar a jogar com o amigo.
— Eh,
pá, amanhã não posso; tenho uma consulta no Centro de Saúde.
— Eu
não acredito que estava a ir na tua cantiga! — desesperou
Casimiro. — Já percebi. Percebo até bem de mais. Sabes o que te
digo? Vai-te catar! Eu não preciso de ti para nada. Se eu quiser
jogar ténis tenho muito com quem.
Casimiro
saiu de ao pé do amigo mais fulo do que nunca. «Falso!» —
pensava para si. «Tu vais ver o que é bom...»
Daí
a uns dias, tendo contactado um outro ex-colega que sempre conhecera
como jogador de golfe, Casimiro
deu as primeiras tacadas num campo de 9 buracos, num
esplêndido espaço dos
arredores. Saboreando o imenso relvado tratado e a cavaqueira com este amigo que
já não via há algum tempo, comprazia-se sobretudo na vingança que
estava a aplicar ao traiçoeiro Francisco.
«Bem
fria é que ela sabe bem!» — confirmou ainda nesse dia, ao
publicar no facebook uma selfie com o amigo golfista:
tacos na mão, um esplêndido relvado e um lago em fundo, felizes.
Joaquim
Bispo
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Imagem: Pintura mural no interior do restaurante anexo ao “court”
central do Jamor, c. 1945 (?).
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