Viajar
para Saturno não fazia parte das aspirações de Oleg, em criança.
As leituras de juventude — muita ficção científica, muita
divulgação científica — levaram-no, no entanto, para caminhos
insuspeitos, mas empolgantes. Aos trinta e dois anos via-se a caminho
de Encélado, uma lua de Saturno com aparentes boas possibilidades de
desenvolver vida: tem água líquida, atividade hidrotermal e uma
composição gasosa com algumas semelhanças com a da Terra. Tais
condições, talvez amigáveis para humanos, desencadearam mais uma
corrida espacial entre as nações do planeta azul. Haverá um
momento em que pequenas colónias de homens terão necessariamente de
procurar alternativas de espaço e de recursos naturais fora da
superlotada e envenenada Terra.
Oleg
integra a minúscula equipagem da Moct, a nave que já navega há
quatro anos e ainda precisa de mais dezasseis para chegar a Saturno.
Os três membros viajam em regime de oito meses de semi-hibernação
induzida, por quatro meses de vigília/sono. O tempo custa a passar.
Ainda falta quase um mês para Oleg voltar a ser submetido à fase
letárgica. O isolamento é penoso e pérfido. Trocar palavras com a
base terrestre é um exercício kafkiano, devido ao desfasamento
temporal provocado pela distância. Uma palavra que ele lançasse
agora para a Terra demoraria mais de três minutos a chegar lá; se
devolvida logo, a resposta chegaria a Oleg mais de seis minutos
depois. Não dava para conversar; só parodiar um patético diálogo
de afásicos.
Oleg
não estava tão isolado assim, tinha consciência. A enorme equipa
que programara a missão a Encélado previra as intermináveis horas
de solidão, estudara os gostos e a personalidade de cada cosmonauta.
A Oleg forneceu quinhentos “teras” de filmes e livros,
distribuídos por vários unidades de armazenamento.
No
final da adolescência, Oleg continuava muito reservado. Era
frequentador da biblioteca da sua cidade natal. Gostava de se
internar no universo fantástico das secções; como descobridor de
mundos, costumava aterrar numa galeria, explorar o continente de uma
estante, deambular pelos vales surpreendentes das prateleiras,
deslumbrar-se com as residências dos habitantes, entrar nas páginas
de uma e tomar contacto com os inesperados moradores, às vezes,
seres bizarros e inquietantes; outras, criaturas simpáticas e
calorosas. À despedida, um conforto espiritual acompanhava-o,
animando a sua condição de homem em busca de enriquecimento
íntimo.
Da
adolescência guardou aquele gosto pelo inesperado: entusiasmava-se
com o que a sorte lhe atribuiria, em pesquisas aleatórias de
leitura. Instalou-se no conforto de uma ténue gravidade artificial da zona de lazer, posicionou o visor a uma
distância cómoda e lançou a pesquisa. A máquina
apresentou-lhe “O jovem pastor e a fadazinha”, um conto valáquio
de Gorki. À memória acorreu a imagem de um prado de extensão
inimaginável. E do deslumbramento juvenil do pastorzinho aconchegado
entre céu e planura.
Lembrava-se
de todos os grandes clássicos: da monumentalidade de Tolstoi, da
sátira social de Gogol, dos contos suaves e realistas de Chécov;
este conto tinha estado encoberto, há tanto tempo que não o lia...
Dentro em pouco, estava embrenhado nas peripécias ingénuas e
carinhosas do pastor e da pequena fada nas margens do Danúbio:
«O
pastor sentou-se à sombra de uma árvore solitária que, amante da
liberdade, se afastara da floresta para crescer em plena estepe;
erguia-se orgulhosa e altivamente, balouçando suavemente os ramos
sob a carícia do vento que soprava do mar.
Era
no mês de maio, um mês encantador, um mês alegre. A folhagem nova
que o mês tinha feito nascer, de um verde magnífico, clamava
alegria; o rumor dessa folhagem formava uma longa onda sonora que se
alongava pelo céu de um azul vivo onde flutuavam suavemente brancas
nuvens macias que fundiam sob os raios ardentes do alegre sol
primaveril. A fada balouçava nos ramos da grande faia e cantava:
A
brisa é suave e perfumada.
Traz
até nós, de toda a parte
suspiros,
murmúrios e ruídos…
Dormir
será delicioso;
o
sono será terno e puro
na
maravilha de um tão belo dia.»
Oleg deitou-se no chão da nave, o corpo enclausurado, separado da sua Terra por centenas de milhões de quilómetros; na mente, a ponte que o terno e inspirador conto lançara e o ligava ao seu país. Imagens aprazíveis das juvenis deambulações pelas margens do Volga afagaram-lhe a superfície da alma. Vislumbres de casa, dos seus...
Continuou a reconfortar-se na leitura, nas evocações, o sorriso tristemente feliz.
Lá
fora, a noite era a eterna e infinita estepe que o separava de casa.
Joaquim
Bispo
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Imagem: Franz
von Lenbach, Um pastorzinho,
1860.
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2 comentários:
Gostei, devem essas viagens ser mais rápidas, se lá se pode viver, é partir já. A terra deve estar a terminar....Obrigado
Sim, a sonda Cassini-Huygens foi lançada em 1997 e demorou cerca de 7 anos a chegar a Saturno. De qualquer modo, é muito. E qualquer outro corpo do sistema solar está longe de ter condições de habitabilidade que “cheguem aos calcanhares” das da Terra. Temos é de cuidar dela e manter modos de vida sustentáveis.
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