As
referências ao estranho caso de Dodô são escassas e pouco
elucidativas. Foi ao folhear números do Jornal de Anadia do ano de
1965, em pesquisas etnográficas, que encontrei uma pequena notícia
no fim de uma página par. Não consigo reproduzir o texto, porque
entretanto perdi a cópia, mas lembro-me que tratava de uma mulher
que se tinha suicidado, após ter assistido a uma apresentação do
Coro Paroquial de Arouca, no Teatro Bairradino. A notícia referia
que o grupo coral carregava um histórico de outras mortes
inexplicadas de espectadores e levantava suspeitas sobre uma possível
influência perniciosa da soprano principal, a tal Dodô. Na altura,
não lhe atribuí grande credibilidade. Sabemos bem como, por vezes,
se empolam e se adulteram factos com “explicações” sem qualquer
relação de causalidade.
Quis
o âmbito da minha pesquisa que eu consultasse outros jornais da zona
centro, algum tempo depois. O Vouzelense forneceu-me a segunda
referência a Dodô: após o espetáculo coral na Casa do Povo, um
homem atirou-se do viaduto ferroviário para as rochas. Não se
conheciam à vítima problemas económicos ou depressivos. Desta vez,
a curiosidade obrigou-me a maiores empenhos. Alarguei a minha
pesquisa etnográfica ao jornal de Arouca, na esperança de encontrar
outras referências a Dodô, na sua própria terra.
No
Arouquense, em todos os anos de meados de 60, foram noticiados um ou
dois casos funestos com espectadores do coro paroquial. Depois de
vasculhar os arquivos do jornal, comecei a fazer perguntas pela
terra. As memórias estavam invariavelmente “apagadas”, mas
depois de ser empurrado de um lado para o outro, dei com um ancião
disposto a falar. Era um ex-professor primário e tinha teorias
próprias:
«Sim,
conheci-a muito bem. Chamava-se Maria das Dores. Era de uma aldeia da
Serra. Farta de frios e malpassar, veio para criada de servir, para
uma casa dalém. Até aqui, tudo normal. No princípio da década de
60, o padre, influenciado pelo espírito do Vaticano II, resolveu
criar um coro, e ela foi das primeiras a aderir.»
«O
senhor nem imagina. A miúda tinha uma voz! Ia para lá do que é
humano. O canto dela tocava-nos onde nada mais nos atingia. Ouvir o seu atormentado
agudo de soprano solar o Stabat
Mater Dolorosa,
sobre os graves de mau agouro dos baixos, compungia todo o auditório.
Parecia que entrevíamos o fim do mundo, cataclismos inomináveis.
Inundava-nos uma angústia tão grande que se, no fim da peça,
olhássemos em volta, iríamos deparar-nos com muitas faces inundadas
de lágrimas. Havia quem soluçasse incontroladamente. Não me admiro
que algumas pessoas não tenham aguentado e tenham praticado atos
tresloucados, como diziam os jornais.»
«A
música tem o que se lhe diga. Não sei se o senhor sabe, mas aquelas
notas têm relações matemáticas exatas entre elas, que já
Pitágoras tentou desvendar. Na Idade Média, a Música era uma das
sete artes liberais que os homens ilustrados deviam estudar, como a
Aritmética, a Geometria e a Astronomia. E é perigosa, sabe? Há
algo de mágico e maligno naqueles doze tons. Doze, como os signos do
Zodíaco. E como os apóstolos, em que um traiu. A música entra no
nosso espírito sem licença, sem nós querermos. Retine e ecoa no
mais íntimo de cada um. É absolutamente intrusiva, violadora,
manipuladora. Nós podemos estar muito satisfeitos da vida, mas se
formos atingidos pela melodia certa, podemos ficar taciturnos e
sentir-nos os mais miseráveis dos humanos. Era o que acontecia quase
sempre que Dodô atuava.»
No
dia seguinte, rumei à aldeia de origem de Dodô, nos altos da Serra
da Freita. Era um lugarejo humilde, quase miserável, encaixado numa
dobra da serra, em que as habitações confinavam com currais, e as
poucas pessoas conviviam com todo o tipo de detritos rurais. Consegui
localizar uma prima, já bem velha, que me facultou alguma informação
mais íntima.
Contou
que, quando iam as duas buscar as vacas, no fim do dia, Dodô parecia
por vezes embeber-se daquele silêncio global, só céu e serra, e
ficava muito parada, como se contemplasse algo peculiar, que só ela
via. Então, lançava um canto dorido que se estendia pela superfície
do planalto escalvado, alcançava as serras mais afastadas e
regressava num eco transmutado, entremeado por reverberações
fantasmagóricas como miragens. Contou que, nessas alturas, toda a
sua pele se arrepiava, como se uma multidão de pequenos seres
invisíveis as envolvesse.
Para
Dodô, aquele eco parecia funcionar como estímulo, e prosseguia em
repetições de outros cantos, outros enleios, sempre tristes. Certo
dia, com o eco, vieram lobos. Seis, cinzentos e de olhos amarelos.
Contou que ficou paralisada de pânico, certa de estar no seu último
dia, mas Dodô enfrentou os lobos, com um canto da serra, nostálgico,
mas firme e destemido. As feras estacaram surpreendidas e, perante o tom enérgico e
uivado do canto de Dodô, afastaram-se, dando mostras de algum receio. «Ela
nunca falava nisso, mas, um irmão, um pouco mais novo, um dia
perdeu-se na serra, ou caiu nalguma quebrada, e foi atacado. Quando o
encontraram, estava quase todo roído pelos lobos.»
Resolvi
visitar o planalto onde ambas se tinham confrontado com os lobos.
Como então, o dia chegava ao fim. A aragem fria e sussurrante trazia
apelos, rumores, ameaças. Em certo momento, o murmúrio cortante
pareceu-me um canto humano, uma queixa dorida e muito aguda. Nunca me
senti tão sozinho. Após uma luta de minutos contra a superstição
e o medo, dei-me por vencido. Desatei a correr sem olhar para trás,
absolutamente aterrorizado.
Abandonei
ali a minha investigação da figura e da personalidade de Dodô. Nem
quis visitar a sua campa. Só resolvi contar tudo isto agora, vinte
anos depois, porque me lembrei do caso ao ler notícias recentes de
um estranho suicídio na Serra da Freita.
Joaquim
Bispo
*
Imagem:
Caspar David Friedrich, Montanhas dos
Gigantes, 1835.
Museu
Hermitage, São Petersburgo.
*
* *
6 comentários:
Gosto das tuas histórias.
Entretenho-me a imaginar os locais e as pessoas pelas descrições que vais fazendo ,tentando perceber onde acaba o autobiográfico e começa a imaginação ... sempre a tentar descobrir como é que vai acabar...
Hoje depois de ler , decidi ouvir a Stabat Mater ...
Curiosamente, pensei há dias numa tua declaração de que quase toda a ficção é autobiográfica. Aqui, terás dificuldade em encontrar essa relação, sendo certo que usei as minhas lembranças de dois passeios pela serra da Freita.
Muito me agrada que os meus textos te suscitem momentos de lazer e pesquisa agradáveis.
Abraço!
O Salvado, eternamente solteiro, com quem nos CTT trabalhei, era assim uma espécie de Fernando Pessoa , sem vontade, no seu *Desassossego*, e um excelente músico. Tocava flauta transversal na Orquestra Típica Albicastrense. Certa noite após uma atuação numa das muitas casas do Povo de então, uma já entradota na idade mas ainda menina, abeira-se dele para o felicitar, dizendo-lhe...ai senhor, ao ouvi-lo, o seu pífaro entrou-me todo cá dentro...
Ao que ele replicou, ... em clave de Sol a via, e tocava para Si, um Mi, em cima de Si sem Dó...
Músicos...músicos... músicos.
manelemalcainsaperaltado.
Diálogo inverosímil, mas muito divertido. :)
faz-me lembrar historias que ouvi contar, em criança, de maus encontros, de noite, pelos campos, com lobos e/ou »almas penadas»...
abraço
O campo era o local onde o homem se encontrava com os seus medos, reais ou imaginados, e com o mistério.
Abraço!
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