(Ilustração Claudio Delamare, feita para este conto — in memoriam)
Discutiram desde os primeiros encontros. Porque ele gostava de cães e ela amava gatos. Porque o melhor dia da semana era sexta-feira, mas não para ele, que preferia o sábado. Assistir ao jogo ouvindo rádio, coisa de maluco, ela debochava. Ou não, rebatia ele. Lavar os cabelos todos os dias. Ou em dias alternados. Tomar chope com ou sem colarinho. Ser protestante. Ser católico, espírita, budista, ateu.
Com os anos, casaram-se. Igreja ou cartório. Poucos ou muitos convidados. Pela manhã, no inverno; à noite, na primavera. Não tiveram filhos. Ninguém queria. Mas discutiram até sobre os porquês. Ela, porque era mulher de carreira, bem sucedida e sem tempo. Ele, por qualquer motivo diferente do dela.
Carro branco; moto preta. Macarrão com molho de alcaparras; camarão na moranga. Lispector, a melhor. Hilst, a incomparável. E enquanto ela escutava jazz no home theatre, ele aumentava o volume dos clássicos no headphone.
Discutiram muito sobre sexo. O deles, o dos outros, o dos anjos. E sobre a cor do mar: azul, verde, acinzentado. Sobre verduras, estrelas, rodapés, sentimentos, fantasmas, sogras, drogas, duendes, países, escovas de dentes. Cada um seguiu em frente — com sua couve ou agrião, com hipernovas ou anãs, com sua Áustria ou Dinamarca. Prontos, sempre, para a próxima rodada de opiniões.
Quando ela ficou doente, discutiram sobre o diagnóstico, antes e depois de o médico dizer que era grave. Tratamento tradicional ou alternativo. Em casa ou no hospital. Com ou sem cirurgia. Ela pediu para morrer. Ele disse que não.
Ela morreu assim mesmo.
Ele foi para casa. Fechou as cortinas, arrumou, lavou, recolheu o lixo. Recolheu em algumas malas tudo o que era dela. Depois, carregou para o quarto o porta-retratos prateado e o colocou no travesseiro ao seu lado.
Antes de dormir, disse para a foto dela:
Você diz que morreu. Mas amanhã nós vamos discutir sobre isso, viu?
2 comentários:
sério: quase rolou uma lágrima aqui. conto primoroso!
Muito obrigada, Luiz!
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