Fizeram 70 anos de casados Dagmar e Décio.
As filhas Desirré, Domitila e Dulce, genros,
netos, bisnetos, parentada próxima e distante,
amigos de longo e pouco tempo sopraram velinhas em torno
da mesa. Era um bolo exuberante, escoltado por uma legião
de brigadeiros, cajuzinhos, bem-casados e línguas de sogra.
Juarez, o churrasqueiro da vila, cuidou de tirar retrato.
- Um sorriso, seu Décio! Tá todo mundo feliz.
Décio não mexeu uma ruga.
Dagmar caçoou.
- Se ele rir, a dentadura cai.
Até o vira lata levantou as
orelhas, abanou o rabo. Dizem que riu.
Décio permaneceu de cara amarrada.
Desirré, a mais velha, insistiu.
- 70 anos, pai. Três filhas, três genros, onze netos,
seis bisnetos, um casal de tataranetos e um batalhão de amigos! Vida linda, pai!
Silêncio.
Juarez já servia saideiras de linguiças, lascas de alcatra e iniciava a sobremesa:
banana d´água na brasa com canela e açúcar. O cavaquinho chorava Noel, Ernesto,
Jacob e Pixinguinha, prenúncios que a cervejada e o domingo iam longe.
As bundas gordas rebolavam aos pélvis e passos de pretensos mestre salas,
as crianças faziam com bolas de guardanapo lances de Copa do Mundo.
E Décio seguia estatuado na cadeira de vime, mãos entrelaçadas, um polegar
se enrolando no outro, o único movimento muscular existente.
- Vô Décio, vem dançar o miudinho.
- Deixa ele, Michele. Se seu avô está mexendo o dedo
é porque está agradado da vida.
Um dos genros quis ser simpático.
- Seu Décio! Conta pra gente: qual o segredo de tantos
anos de casamento?
- Zíper.
Foi só o que disse. Nenhum sorriso. Apenas um gesto
do polegar grudado ao indicador, percorrendo a boca de
uma ponta a outra. E foi eloquente ao seu modo. Repetiu:
- Zíper.
Dagmar interveio.
- É fechecler, Décio. Para com essa mania de modernidade.
Zíper.
Enquanto dançava-se, cantava-se e gargalhava-se, pelas telas
da memória de Décio passava um filme mal editado e de tempo
embolado, fragmentos de más lembranças.
- Calça pescando siri? É casamento de nossa primogênita,
Décio. Está um perfeito tabaréu.
Zíper.
- Se é para passar o sábado no turfe, que jogue num cavalo
que não manca.
Zíper.
- Vem pra casa, Décio. Larga esse carteado. Seu neto vai nascer.
Tomara que não venha a sua cara.
Zíper.
- Você não desligou o filtro, Décio. Encharcou a cozinha toda.
Pega logo esse rodo, vai.
Zíper.
- Serão numa repartição pública sexta-feira? Tem sirigaita aí.
Essa sua cara de songamonga não me engana.
Zíper.
- A comadre Odete descobriu que o Jandir tinha uma amante.
Despejou água fervendo no ouvido dele. Ouviu, Décio?
Estou avisando: já botei a chaleira pra ferver.
Zíper.
- O dinheiro da feira está minguando. É jogo, cachaça ou mulher?
Ou tudo junto?
Zíper.
- Sonhei casar Domitila com cadete das Agulhas Negras. Diz que está
de flerte com um cabo dos Bombeiros. Menina sem ambição.
Puxou ao pai.
Zíper.
- Décio, quantas vezes?! Bisnaga de creme de barbear na pia dá nisso:
escovei os dentes com Bozzano.
Zíper.
- Isso é hora de me incomodar? Vai dormir, Décio! Não tem nada
pra você entre as minhas pernas.
Zíper.
- O papagaio fugiu pro vizinho e está lá gritando
palavrão. Foi você que ensinou, diacho.
Zíper.
- O vizinho queria tirar satisfações com você. Eu é que fui lá resolver.
Zíper.
- Até a vizinhança sabe que você é de fritar bolinho.
Zíper.
Uma passagem peculiar emergiu das entranhas de Décio. Lembrou de uma
decisão honrada há mais de 20 anos.
- A partir de agora, só falo com você em inglês, velha chata.
- Tá, maluco, Décio? Você nem sabe dizer gudimôrningui.
- O que quer dizer isso?
- “Bom dia”, seu burro.
- Então nem “bom dia” eu digo mais.
- E você lá dá “bom dia” pra alguém? Só se for pras suas vagabundas.
Zíper.
Quase dez da noite. O chorinho aquietou, o pandeiro sossegou, a brasa
esfriou, o que sobrou do bolo esfarelou. Despedidas emocionadas, palmas
para o casal.
- Faz um discurso, Décio, diz alguma coisa. Os parentes vieram
homenagear a gente.
Ziper.
Atordoado com a gentarada alegre daquele domingo,
Décio só se deitou para lá de meia noite. De pijama listrado,
posicionou-se rijo. Pés juntos, mãos sobre a barriga, dedos entrelaçados.
Olhou fixo para o teto. Dagmar ensaiava os primeiros roncos.
- Dagmar... acorda, Dagmar!
- Que diabo, Décio! Resolveu falar?! Agora?!
- Não gosto de baunilha.
- O quê?
- O glacê do bolo tinha gosto de baunilha.
- Deixa de ser ingrato, seu chato. Dulce confeitou o bolo com
tanto carinho.
- Muita baunilha. Enjoa.
- Ah, vai amolar o boi. Vai no banheiro, vomita a baunilha e vê
se desce junto pelo vaso.
A duas quadras da casa dos pais, Desirré embalava o neto caçula
que teimava em não dormir, quando ouviu palmas no portão.
- Dona Desirré, acho bom a senhora ir até a vila agora.
Melhor ir rápido.
Descalça, de camisola, sem penhoar, Desirré largou a criança com
o marido e correu. Até que paralisou. Uma pequena horda de enxeridos
se aglomerava na entrada da vila. Lá no fundo, luzes de ambulância,
polícia e rabecão piscavam um ar de festa que não havia. Desirré se
espremeu entre os curiosos, escapuliu esbaforida do cordão de isolamento
e viu um corpo enrolado num lençol sendo colocado no papa defunto.
Viu dois policiais examinando uma serra de cortar pão ensanguentada.
Viu outros dois policias retirando o pai de dentro da casa em direção
ao camburão. Tiveram a gentileza de não enfiar um velho de 96 anos na
caçamba. Sentaram o infeliz no banco da frente, algemado com as
mãos para trás. Desirré voou, rodou pela viatura, socando lataria e janelas
fechadas. Décio olhou para a filha sem mexer uma ruga. Desirré olhou
o pai e se desmilinguiu em câmera lenta. E bateu mãos
e testa no vidro. E gritou em silêncio. E babou de soluçar.
E se descabelou. E se entupiu de baba e coriza. E pranteou de engasgar.
E deixou cair o pivô da frente.
A sirene começou a tocar. Desirré se jogou no capô de braços abertos e
viu pelo para-brisa manchas no pijama listrado do pai. Sangue
ainda fresco, respingado no rosto craquelado e nos últimos fiapos brancos da careca.
Viu os olhos do velho Décio querendo dizer tudo. Mas, sem coragem ou sem vontade,
diziam nada.
Zíper.
quarta-feira, 20 de junho de 2018
TOLERÂNCIA
por José Guilherme Vereza
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