«Tudo
menos troça!» Mauro pediu mais uma cerveja. Mantinha na retina a
imagem da jovem em risinhos e a cochichar com as amigas, na véspera.
É claro que era um falhado, toda a gente sabia isso, mas troça é
que não. Para a menina do papá era muito fácil rir-se dele. Não
tivera de passar pela experiência de dormir debaixo de um viaduto,
na vila; não tinha de aceitar o trabalho que aparecesse, fosse
ajudante de trolha, fosse ajudante de cargas, na serração. Com 19
anos, ele não tinha um telemóvel de jeito, não tinha carro, não
tinha amigos, não tinha nada. Vivia com a mãe viúva, sempre com
recomendações; que se esforçava, mas não lhe dava um mínimo para
um rapaz dos tempos atuais. Às vezes, não lhe dava nem trocos para
ir ao café. Ficava a ver televisão em casa, mundos magníficos tão
diferentes da sua aldeia encravada entre montes cobertos de pinheiros
e eucaliptos, revoltado com a sua vida sem futuro.
Saiu
do café e acendeu um cigarro. Caminhou na direção oposta da sua
casa, ao longo da estrada iluminada por alguns candeeiros esparsos,
que ladeava a pequena ribeira que atravessava Lage Fundeira. Passou
em frente da vivenda de Carla. Imaginou-a em frente a um computador,
a trocar piadas com amigas e amigos. Voltou a lembrar-se do riso
dela. Um incómodo voltou a atravessá-lo. Prosseguiu até as casas
acabarem e sentou-se numa pedra a ouvir a ribeira. Aquele enorme
silêncio, em vez de o acalmar, trouxe-lhe uma visão clara do seu
exílio. Só, abandonado, miserável, esmagado debaixo de toneladas
de pasmaceira.
Cheirou-lhe
a fumo. Mais uma vez. Na véspera, o fogo andara numa serra não
longe dali. Tinham lá estado os bombeiros e a televisão. Uma
animação enorme. Se tivesse carro, tinha lá ido ver. Acendeu outro
cigarro e observou o insinuante bruxulear da chama do isqueiro.
Baixou a cabeça, pensativo.
Quando
os bombeiros chegaram, meia hora e tal depois, Mauro observava da
janela de casa o fogo a alastrar pelo mato próximo da zona onde o
incêndio tinha começado — uma pequena várzea de feno seco do pai
de Carla. Um autotanque e um carro de transporte com 8 bombeiros, num
alvoroço de sirenes, postaram-se na estrada contígua ao fogo. Com
grande agilidade e rapidez, os homens desenrolaram mangueiras,
puxaram-nas, avançaram em direção ao fogo, e lançaram jatos de
água sobre o mato em chamas. Era belo e empolgante. Mauro chamou a
mãe e saiu de casa a correr. Para ver de perto o ataque às chamas e
ajudar aqueles homens esforçados. Pouco depois chegaram mais dois
autotanques e outros carros e em menos de outra meia hora estava o
fogo dominado. Ainda andaram por ali muito tempo, para assegurar o
rescaldo, a Guarda alvitrou que devia ter sido uma ponta de cigarro
acesa atirada de um carro, mas depois foram-se todos embora e Lage
Fundeira voltou ao sossego característico. Fora tudo tão rápido,
que nem apareceu a televisão.
Mauro
não gostou de tanta eficácia. Esperava que o incêndio durasse pelo
menos um dia, mas nem sequer pôde ver um helicóptero a lançar água
sobre nuvens de fumo e chamas. Tinha de ser mais esperto, planear
minimamente, executar sem ser de impulso.
Na
segunda-feira seguinte, ao lusco fusco, Mauro desceu à azenha velha,
depois tomou o antigo trilho dos moleiros, serra acima. Meia hora
depois chegou a um barrocal, a que chamam Fraga do Mocho, que agora
está envolvido por uma mata de urzes e giestas. Escolheu uma área
bem densa e seca e instalou o seu engenho — uma cana oca cheia de
musgo seco, com uns vinte fósforos na ponta. Junto a essa ponta,
três acendalhas e uma boa dose de caruma, e gravetos de giesta.
Depois de confirmar que tudo estava estável e aplicado conforme
tinha pensado, acendeu a ponta inicial da cana e afastou-se para um
ponto da serra afastado mais de cem metros, de onde podia assistir ao
eclodir do fogo.
O
engenho não o desiludiu, nem o resultado. Assim que o musgo em brasa
atingiu os fósforos, foi tudo muito rápido: chamas surgiram, os
gravetos incendiaram-se, em breve a giesta a que estavam ligados
começou a arder e depois outras giestas em todas as direções até
o fogo atingir o eucaliptal anexo, onde as línguas de fogo começaram
a trepar por dezenas de metros. Em pouco tempo, o incêndio tinha uma
frente de quase cem metros e uma altura de vinte ou trinta. A salvo e
com a retirada planeada, Mauro deliciou-se com a magnificência e a
sofisticação daquele espetáculo admirável. A potência e o fulgor
das labaredas impressionavam. As chamas dançavam e insinuavam-se por
entre os estáticos troncos. O calor começava também a atingi-lo.
Em êxtase, abriu as calças e masturbou-se à vista daquela visão
luxuriante. O fogo alastrava com rapidez. O orgasmo intenso, com o
seu efeito de alheamento, quase o pôs em perigo. Desatou a correr,
apanhou mais à frente o trilho que trouxera e em vinte minutos
estava em casa.
Essa
foi uma noite em que Mauro não dormiu. Nem Mauro, nem os outros
habitantes da aldeia. Em poucas horas, o fogo ganhou três
quilómetros de frente. Pela manhã, o horizonte estava escondido por
rolos de fumo negro e surgiram dois pequenos aviões de ataque a
fogos a lançar grandes jorros de água sobre as chamas.
Levantavam-se enormes nuvens de fumo branco. Parecia um cenário de
guerra, ou, pelo menos, dos filmes de guerra. Pelo meio-dia, temeu-se
que as chamas chegassem à aldeia. Houve ordem de evacuação, mas
Mauro conhecia a região — foi instalar-se junto da ermida da
Senhora do Alto, de onde podia continuar a presenciar o espetáculo
das chamas e de todo o aparato para as combater. À tardinha, o fogo
tinha ultrapassado a serra e mudado de concelho e todos puderam
voltar a casa e contabilizar as perdas: quatro ou cinco palheiros
ardidos, gados tresmalhados, muitos hectares de floresta queimados. O
Telejornal mostrou uma reportagem do incêndio e, pela primeira vez,
Lage Fundeira apareceu na televisão.
Um
ano depois, Mauro continua sem amigos, sem namorada e sem trabalho
certo, mas não está muito decidido a incendiar a serra outra vez. A
encosta negra está longe de lhe transmitir os apelos lúbricos que a
floresta verde proporcionava.
Joaquim
Bispo
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Este
conto integra — páginas 91 a 93 — a 9ª edição da Revista
LiteraLivre, em formato e-book, resultante de concurso
literário de abril de 2018: https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_9__edi__o
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Imagem:
António Grancho, Incêndio, 2003.
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4 comentários:
Pode muito bem não ser ficção!!!
Se isso quer dizer que parece credível, obrigado! :)
Abraço, Peralta!
Onde é que eu já li isto?
Em lado nenhum, André Valente. Foi escrito em agosto de 2017, enviado para um único concurso e publicado na revista indicada no final de maio de 2018. :)
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