Ficou-lhes
sempre na lembrança que tinham casado uns dias antes de Salazar ter
caído da cadeira — 1968. Escolheram a igreja de São João Batista
ao Lumiar, para a cerimónia religiosa, e o Castanheira de Moura, um
restaurante da Estrada da Torre, para a boda. Vieram muitos
familiares de Amélia, do Alvito, e alguns outros convidados do noivo
Leonardo, da zona de Lisboa. Enquanto não arranjavam casa, ficaram a
viver em casa da mãe dele, que tinha um andar espaçoso na zona
velha da Quinta de S. Vicente.
Os
primeiros anos correram bem, tanto quanto podem correr a quem tem
ordenados de datilógrafa e de eletricista; valia-lhes não pagarem
renda de casa. Depois ela conseguiu entrar para hospedeira de terra,
no Aeroporto, e ele para técnico do Rádio Clube, mas, se entrava
mais dinheiro, a separação determinada pelos horários ditou um
maior afastamento.
Quando
o 25 de abril de 74 rebentou com os dias negros da Ditadura, abriu
também janelas de esperança a todos os que viviam vidas de cinza.
Amélia viveu as euforias das manifestações, das lutas por melhores
salários, das liberdades conquistadas. Passou a sair com colegas
que, como ela, terminavam o turno à meia-noite, para beber um copo.
Era bem mais apetecível do que ir a correr para casa, onde a
esperava a sogra controladora. Leonardo fazia geralmente o turno da
meia-noite às oito da manhã.
No
grupo de quatro ou cinco colegas, rapidamente se aproximou do Paulo,
que, além de uma boa figura, tinha carro e era a boleia certa para
casa. Por fins de novembro, Amélia passou a ser visita frequente do
quarto dele na Calçada de Carriche. Nunca o marido suspeitou, embora
a mãe não deixasse de o informar das horas a que ela chegava a
casa.
Certa
noite, lá por maio, o desejo não pôde esperar por um quarto —
amaram-se no banco do pendura do carro de Paulo, numa rua sem casas
dos altos do Restelo. De vidros embaciados, uma lanterna acesa
tentando descortinar o que se passava lá dentro foi um final
desagradável — pós-final, felizmente. Dois polícias de giro
identificaram os amantes e aconselharam maior discrição.
No
dia seguinte, o alarme: um dos polícias telefonou para casa de
Amélia — sabe-se lá com que intuitos lúbricos — e não houve
como negar a relação extra-conjugal. Depois de discussões
violentas, Amélia saiu de casa. Paulo recolheu-a e durante umas
semanas parecia que a situação era o melhor que lhes podia ter
acontecido, a não ser…
A
não ser pelos meandros escuros da natureza humana. Pareceu a Paulo
que a situação de Amélia era de dependência, e tornou-se um pouco
sobranceiro. Além disso, a relação perdera aquela fulgurância de
chama que só a clandestinidade atiça. Sexo sem ser furtivo perdia
parte da graça. E Amélia não deixou de o perceber. Dois meses
depois, mudou-se para um quarto que dividia com uma amiga.
Paulo
não gostou. Mesmo sem a excitação de coisa proibida, sexo em casa,
disponível sem muito trabalho, agradava à sua preguiça inata.
Agora voltava a ter de se esforçar — combinar encontros, organizar
e acompanhar passeios, fazer trabalho de sedução. E tornou-se
altamente ciumento. Quando soube que Amélia tinha saído com um
grupo de outro colega, fez uma cena. Mas Amélia tinha crescido, à
imagem do país, que estava muito mais aberto e liberal. Já não
estava para aturar manápulas de controlo. E rompeu com Paulo.
Ao
contrário do homem de ideias arejadas que Paulo parecera ser,
revelou-se, afinal, um tipo misógino e vingativo: no auge do
ressabiamento, telefonou para o ex-marido de Amélia. Identificou-se,
pediu desculpa pelos atos anteriores, declarou-se solidário com a
sua situação de marido enganado e pediu solidariedade para a sua
similar situação de amante enganado. Por palavras hábeis,
demonstrou como ambos tinham sido atirados para a mesma humilhante
condição por uma mesma pessoa, uma mulher volúvel, sem caráter. A
terminar, indicou pormenorizadamente o local onde ela se encontrava
com o novo namorado.
Leonardo,
querendo recuperar alguma dignidade que julgava perdida, dispôs-se a
mostrar firmeza conjugal. Dirigiu-se ao local indicado e efetivamente
apanhou os amantes em flagrante. Uma moca de Rio Maior, que nessa
altura era muito popular nas lutas políticas norte-sul, foi a
ajudante que convocou para dar o necessário corretivo na ex-mulher.
Deixou-a inanimada com escoriações e hematomas nas pernas, nas
costas, no peito e um traumatismo craniano. O namorado escapou antes
que Leonardo pudesse apanhá-lo.
A
Polícia tomou conta da ocorrência e o processo da agressão foi a
tribunal em novembro. Depois de ouvir as queixas de uma e as razões
de outro, o despacho do juiz foi claro: admoestava-se o ex-marido
pela conduta descontrolada, mas tomava-se em conta a humilhação a
que tinha sido sujeito. Verberava-se com ênfase a conduta traiçoeira
de Amélia, causa primeira das posteriores agressões. Referia-se
que, felizmente para ela, já não se apedrejavam adúlteras, como
era de lei nos tempos sagrados relatados na Bíblia.
De
nada valeu que o advogado de Amélia lembrasse que não era ela que
estava a ser julgada, que ela é que fora agredida barbaramente, e
que todo o indivíduo tem direito a não ser discriminado perante a
Justiça, conforme a Declaração dos Direitos Humanos.
Amélia ouviu uma repreensão verbal por conduta indigna e o ofendido um pedido de comiseração, tendo em conta os tempos
desvairados que se atravessavam. Saiu calada. Sentiu-se outra vez
género menor. Percebeu que os tempos de liberdade e luz que a
sociedade vivia não tinham tocado alguns setores.
Pouco
depois, o golpe contra-revolucionário de 25 de novembro de 75 punha
um ponto final nas aspirações progressistas pós-ditadura de
Salazar. Nada que ainda causasse perplexidade a Amélia. Claramente,
o 25 de abril não chegara à Justiça, mas também já não ia
chegar. Três meses depois, aceitou a carta de chamada de um primo e
mudou-se para o Canadá. De vez.
Joaquim
Bispo
Imagem: Jean-Paul Laurens, O Papa e o Inquisidor [Sixto IV e Torquemada], 1882.
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Este
conto integra a coletânea “Direitos humanos e minorias” da
Revista Gueto, 2º semestre de 2017, edição especial, pp. 64–66.
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8 comentários:
Gostei de ler e realmente a liberdade não chegou (mesmo hoje em dia) às mulheres e não somente em relação a uma igualdade comportamental, mas também em relação ao nível salarial.
realmente Portugal é o País mais INJUSTO da Europa (e com classificação de topo na injustiça mundial) onde o dinheiro compra a Justiça.
veja-se por exemplo o caso Ricardo Salgado, que depois de ter saqueado o dinheiro dos clientes e contribuintes, é recompensado com uma diminuição para 1/3 da sua fiqança e agraciado com uma reforma de 90.000 € mensais mais 13º e 14º mês.
Impressionante não é?
Meu caro Joaquim.
Antes de se transformar em cinzas, nunca devemos esquecer o calor, os calores, dos bons borralhos...
Nem sempre, mas, por vezes, dão nisto.
maneldalcains.
Fez ela muito bem...
Os meus cumprimentos. Os tempos mudaram, mas muito do que fala ainda subsiste. Os ventos de Abril não conseguiram acabar com certas práticas... Os meus cumprimentos.
Desculpem estas respostas tardias, mas o blogger só me mostra as mensagens semanas depois de feitas… Porque será?
~
Há um aspeto surpreendente, Dumoc, é que agora muita da podridão vai sendo conhecida, o que nos conforta, mas o resultado habitualmente frouxo exacerba a frustração em nós, mais do que quando só desconfiávamos.
Tens razão, Peralta, mas esse aspeto entra aqui a arranhar como ponteiro de lousa em quadro de ardósia… :)
Obrigado pela leitura, Baptista!
O tempo de mudança de mentalidades das instituições é longo, muito longo…
Obrigado pela leitura, Carlos Vale!
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