«O
novo panorama terrorista mundial obriga-nos a gastar muitos recursos
e a equacionar outras formas de guerra.» — alertava a caixa
introdutória do artigo da revista. O assunto interessava a Patrício Neves. Verificou as outras “gordas”: «Até aonde devemos ir no combate ao terror? De quanta humanidade estamos dispostos a abdicar? Devemos aceitar descer aos níveis de desumanidade dos terroristas, desde que nos salvemos e aos nossos compatriotas?»
Enquanto os colegas analisavam
o conteúdo de uma escuta à comunicação de um suspeito, foi lendo
o corpo do artigo. De repente, cresceu a agitação à sua volta.
Parecia que as semanas de vigilância nas comunicações tinham dado
frutos. Hasnain, o intérprete que trabalhava para os serviços
secretos, foi perentório:
— Bomba!
Eles falar em bomba. Falar “Baixa-Chiado”. Passar gravação outra vez!
Não
foi possível detetar a origem da chamada, mas o SIS já conhecia a
morada do recetor: uma casa decrépita na zona da Mouraria.
Eram
sete e meia da manhã quando os agentes entraram na rua do Capelão,
já de saídas bloqueadas. O suspeito, um paquistanês de menos de 30
anos, não ofereceu qualquer resistência. Uma busca minuciosa
encontrou uma dúzia de telemóveis e uns vinte sacos, de cinco
quilos, de farinha. Antes das nove, iniciou-se o interrogatório nas
instalações dos Serviços. Ahmid, o suspeito, garantia que não
sabia quem lhe tinha telefonado.
— Tu
não me venhas com tretas! Quem é que te telefonou? Era uma ordem
para um atentado? Fala, senão faço-te engolir esses dentes! —
irritava-se o agente Moreira.
— Eu
não sabe. Telefone tocar, Ahmid ouvir.
Parecia
sincero, mas com terroristas nunca se sabe.
— Mas
quem foi e o que queria?
— Não
sabe. Falar Lisboa, perguntar loja fruta.
Não
se passou disto toda a manhã, até que, pelas duas da tarde, os
quatro agentes envolvidos na detenção, cansados e irritados,
resolveram fazer uma pausa para comer qualquer coisa. Um deles
sugeriu uma conhecida adega do Lumiar, ali perto. Àquela hora já
devia ter lugares.
Assim
que se sentaram, veio o assunto de serviço à baila:
— Eh,
pá, não podemos ficar nisto, conversa, conversa… e nada —
equacionava o Martins.
— E
uma chapada de vez em quando — brincava o Mendes. — Só para
aquecer…
— Isto
se fosse na América não ficava por aqui. O Trump já disse que os
serviços lhe garantiram que a tortura resulta — lançava o
Moreira. — «Absolutely!»
— Eles
lá não são de modas. Vai tudo a waterboarding
— concordava o Martins.
— Mas
eles não tinham proibido isso? O Obama!
— Esta
cena da verdade alternativa, de que agora se fala muito, já tem
muita tradição por aquelas bandas — teorizava Neves, o mais
calado. — Eles têm um problema com a verdade. Condenaram a
Manning; e vão engavetar o Snowden e o Assange, se os apanharem lá.
A verdade está amordaçada e emparedada nas masmorras da
Administração.
— Eh,
lá! Temos poeta — ironizava o Mendes.
Quando
atacaram
o “borrego no forno”, passaram a falar abertamente da técnica de
tortura conhecida como waterboardind
ou afogamento simulado, talvez por uma mórbida associação de
carnes indefesas.
— Dizem
que aquilo resulta mesmo. Porque o tipo com o pano encharcado na cara
não consegue respirar, porque, se respirar, respira água. Se a água
entra na faringe, o tipo engasga-se e a sensação de morte iminente
por afogamento é avassaladora — explicava o Martins.
— Eh,
pá, como é que sabes isso tudo? — perguntava o Mendes. —
Andaste a pesquisar... Não me digas que queres aplicar isso ao nosso
Ahmid?
— Mendes!
Porra. Contém-te! — ralhou o Martins, que parecia a voz que
congregava as dos outros. — Mas temos da fazer alguma coisa —
adiantou em voz baixa, enquanto rastreava o resto da sala.
— Eu
também acho — apoiava o Moreira. — Até uma gaja como a Meryl
Streep disse uma vez que, meditando sobre o assunto, chegou à
conclusão que, se a tortura de um suspeito de terrorismo evitar
milhares de mortos, então acha a tortura aceitável.
— Nem
de propósito — atalhou o Neves, enquanto sacava do bolso interior
do casaco a revista que estava a ler nessa manhã. — Em 1932,
Oliveira Salazar dizia isto: “Os presos maltratados eram sempre, ou
quase sempre, temíveis bombistas. Só depois de empregar meios
violentos é que eles se decidiam a dizer a verdade. E eu pergunto a
mim próprio se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas
indefesas não justifica, largamente, meia dúzia de safanões a
tempo nessas criaturas sinistras.” Salazar e Meryl Streep, a mesma
luta...
— “Meia
dúzia de safanões”… O tipo era um cómico — ironizava o
Mendes, refeito.
— Eh
pá, não vamos misturar — reagia o Moreira. — Esta gaja é lá
dos direitos humanos e dessas merdas, que agora até disse,
referindo-se ao Trump, que “desrespeito
convida ao desrespeito e violência incita à violência”.
— Adoro
coerências — adiantou o Neves. — O desrespeito do Trump
incomoda-a, mas estava disposta a torturar prisioneiros.
— Para
salvar vidas…
— Eh,
pá, se a gente cede nos princípios, às tantas estamos a fazer o
mesmo que os terroristas — reincidia o Neves.
— Nós
estamos a defender os nossos concidadãos. Esses terroristas não têm
nada que ver com os nossos valores, com a nossa cultura. Se for
preciso dar a volta a algum… temos pena.
— Os
nossos valores... antes ou depois de torturarmos pessoas?
— Arre,
que é estúpido! — exagerou o Moreira. — Desculpa. Ó Neves,
porra!; não somos todos iguais. Eles são outra coisa. E se ainda
por cima nos querem matar…
— Eu
também já li — defendia-se o Neves. — Parece que aquilo é
lixado. Mesmo que o tipo desconfie que é simulação, nunca tem a
certeza. A aflição é aterradora. O tipo fica traumatizado durante
muito tempo. E há tipos que desistem e deixam entrar demasiada água
nos pulmões e, se não morrerem, ficam com sequelas graves. Mas o
mais ingrato, nesta cena de torturar ou não torturar, é que os
resultados não são fiáveis. Um tipo nessas circunstâncias diz
qualquer coisa para se livrar do que lhe parece uma morte certa.
— É
isso que é preciso, que fale, que diga o que nos interessa. Achas
que um tipo a afogar-se vai pensar em dizer uma mentira? —
racionalizava o Martins.
— Se
ele não tiver uma verdade para dizer, ou se a verdade que está a
dizer não for aceite, ele diz o que lhe vier à cabeça. É o caso
dos inocentes.
— Sempre
me saíste um lírico, ó Neves… Achas que aquele tipo que lá
temos está inocente? Achas que não sabe quem lhe estava a
telefonar? O Hasnain ouviu bem falar em bomba. Eh, pá, temos que dar
este pequeno passo. Para defendermos a vida dos nossos concidadãos,
que é a nossa missão sagrada. Ficas de consciência tranquila se
falharmos e explodir uma bomba na estação de metro da Baixa-Chiado?
Era uma carnificina.
O
Mendes tinha-se calado de vez. As piadas não cabiam ali. O Moreira
estava intimamente satisfeito com a argumentação do Martins.
Concordava a cem por cento. O Neves sentia-se desconfortável, mas
tinha dificuldade em arranjar argumentos. Não era fácil contrapor
postura humanista, civilizacional, ao perigo de atentado potencial.
Como arriscar? Havia uma enorme assimetria de risco envolvido.
— Sem
autorização de cima, temos de ser muito cautelosos. Não podemos
forçar demasiado. Se o tipo não falar às primeiras, paramos, ok?
De
regresso aos Serviços, passaram o resto da tarde com perguntas
marginais.
— Para
que queres tanta farinha em casa? É para fazer uma bomba lenta?
— Fazer
frito, senhor. Ahmid vende na loja.
— E
os telemóveis?
— Ahmid
arranja.
Depois
de todo o pessoal administrativo ter saído, levaram o suspeito para
uma garagem e amarraram-no de costas sobre uma bancada, com a cabeça
um pouco mais baixa.
— “It’s
now or never”, Ahmid. Ou falas agora ou já não falas mais. Quem é
que te telefonou?
O
paquistanês apresentava um olhar aterrado. Até ali, tudo tinha sido
mais ou menos esperado, mesmo as bofetadas. Agora as movimentações
dos quatro homens indicavam que vinha aí violência extrema.
Esqueceu-se até de responder. Um dos agentes colocou-lhe um pano
sobre a cara, enquanto outro começou a verter água de um jarro
sobre a zona entre boca e nariz. Ahmid manteve a boca fechada por uns
momentos, sentindo alguma a inundar o nariz e a entrar para a
garganta. Aguentou quase meio minuto sem respirar, mas um
engasgamento irrefreável tomou conta do seu corpo. Conseguiu expelir
alguma água, mas outra entrava e nenhum ar. Tossia água para fora e
para dentro. Começou a estrebuchar violentamente. Uma angústia
terrível assaltou-o. O coração ribombava. A morte devia ser
aquilo. Lançou um último e desordenado pensamento para o seu jovem
irmão que ficara no Paquistão.
— Quem
é que te telefonou? — foi o som que se ordenou um pouco, depois de
lhe tirarem o pano da cara. O coração batia freneticamente.
Inspirou num urro, tossiu convulsivamente, sentiu o ar a queimar nos
pulmões. — Quem, quem? — repetia a voz. Antes que lhe colocassem
o pano de novo sobre a cara, Ahmid gritou:
— Allahu
Akbar!
— Eu
não disse? — afirmava-se o Moreira, segurando o pano ensopado
sobre o rosto de Ahmid. — Dá-lhe mais!
— Pessoal,
calma! Tínhamos combinado não exagerar — afligia-se o Neves.
Alguns
sons sarcásticos dos colegas foram a primeira resposta.
— Ó
Neves, estamos nisto juntos — ripostou o Martins. — Se não
assumes as tuas responsabilidades, sai daqui. Cá estão os colegas
para fazer o trabalho que o menino não quer fazer. Sem problema.
Vai! Vai lá! Mas já sabes… Não fales disto a ninguém, ok? Ok?
Neves
aceitou a sugestão ordenada e humilhante. Meteu-se no carro e foi
para casa, profundamente deprimido. Sentia-se incompetente e
desenraizado. Começava a questionar seriamente a sua vocação para
agente secreto. Parecia ser uma questão de estômago.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Fernando Botero, Abu Ghraib (série),
2005.
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(Este
conto integra a coletânea Civilização e Barbárie da
Revista Gueto, 1º semestre de 2017, edição especial, pp. 63–68.)
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6 comentários:
Deus, para quem tem a fé de que assassinar inocentes é hediondo crime, é GRANDE...
Parabéns! Gostei.
Gostei. tentarei ser mais assídua nas minhas leituras.
Obrigado, AAA! :)
Obrigado, Isabel!
:)
Aperaltado, o teu comentário esteve invisível para mim e talvez para todos durante algum ou muito tempo. Certo é que não foi logo disponibilizado. Estamos vigiados, não tenhamos dúvida disso. Vivemos numa sociedade vigiada. E não sei se isso é bom… Se isto acontece ao nível de um pequeno blogue, imagina-se o controlo que é exercido sobre os meios de comunicação que têm capacidade de influenciar muita gente. O resultado é uma difusão e uma propaganda dos valores de um Estado – o americano – de maneira tão intensa que se pode falar em controlo totalitário. E é pena. Não se trata de informação, elucidação, democracia, mas propaganda, manipulação, controlo de massas. Falar em mundo livre, referido a esta parte, é uma falácia obscena.
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