Os primeiros
passos atrapalharam-se-lhe no roto das alpargatas e num pedaço de nastro imundo
que lhe sobrou do interior dos trapos que lhe serviam de calças.
Dormira
ali mesmo, e já não fazia tempo para dormir, assim, tendo por tecto, não as estrelas
e o céu muito negro e alto, como semelhavam os céus de Estio, mas este céu de
chumbo a querer desabar.
Desramelou-se
com dois dedos da mãe esquerda que, com a outra mão, ele colocou ao ombro o
bornal que lhe servira de travesseiro, e foi seguindo pelo caminho de terra e
pedras soltas que levava ao povoado. O corpo seco, muito erecto, parecia buscar
uma antiga dignidade, uma perdida juventude. Levou a mão ao bolso do casaco que
ele mesmo remendara: pontarelos negros a segurarem restos de uma sarja que já
fora azul. Tome, diziam-lhe, e ele agradecia e nem reparava se era o seu tamanho.
Desagradecido, dir-lhe-iam se recusava. As criadas, sobretudo elas, eram
altivas e cruas. Ele aceitava tudo de olhos baixos. Hoje, teria sorte de
encontrar quem lhe desse um naco de pão e umas azeitonas. Tirou do bolso o que
seria de comer pois que meteu à boca. Era um courato ressequido que saberia a
ranço e com ele foi entretendo o estômago. Na esquina caiada de um muro de
quinta, buscou a porta de serviço. Aguardou uns instantes. Não tocou. Raramente
o fazia. Antes aguardava que alguém da casa entrasse ou saísse. E ali estava. Remexida
na saia que roçava a soca de madeira, surgiu na azinhaga uma rapariga. O
toucado e o avental diziam que era serviçal e ele estendeu a mão, os
olhos por terra e, quando a rapariga estava a dois passos da entrada,
balbuciou, sempre de olhos baixos: um niquinho de broa pelo descanso de todos
os da casa. A rapariga desviou-se dele e, murmurando, um salve-o Deus, abriu a
porta e passou para dentro o corpo roliço e mais a cesta que trazia no dobrar do
braço. E fechou a porta e o fechar-se da porta deixou no ar um ruído seco.
Ele
ficou ali, de pé, hirto numa espera que desejava pródiga em esmola, e foi
mirando, distraído de si e daquele ficar ali esmolando, os pormenores da pedra rosada que contornava a
porta, cantaria talhada por mãos de artista. Demorou os olhos na corda esculpida: tão parecida que semelhava, embora fosse pedra. Estava nisso, quando a mesma rapariga apareceu ao postigo. Notou-a gaiata. Espreitando na janelinha estendia-lhe um pequenino
embrulho: papel gorduroso que ele recebeu nas mãos em concha, balbuciando
que Deus abençoe a todos nesta casa, e já a rapariga se recolhia fechando a
portinhola sem ruído.
Espreitou
o papel amassado de ter servido outros embrulhos e sorriu-se a olhar o pedaço
generoso de pão de centeio e os ossos ainda salpicados de peles de borrego. Percebeu
que era borrego pelo cheiro, e o estômago pediu-lhe um pedaço. Aquietou-o
aspirando fundo aquele odor de comida e tirou um pedacinho de miolo do pão que colocou
na língua a chupar-lhe o doce. Comeria o resto mais logo. Comeria quando
percebesse se aquele lhe devia servir de almoço ou se seria mais sensato
deixá-lo para a ceia. E meteu o embrulho no bornal esburacado que trazia ao
ombro. A aquietar aquele alvoroço do corpo a tentá-lo, buscaria água na fonte que havia
antes de despontar o casario do povoado; e colheria fruta nalgum galho dependurado num valado.
Ameixas que ainda as haveria nas árvores. E foi seguindo caminho, vagaroso, a
cismar nos figos que nem sobrariam, pecos, nas figueiras. Colheria de bom grado, uns quantos.
imagem Mendigo de Mihaela Mihailovici 2013
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