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domingo, 15 de outubro de 2017

esmola


Os primeiros passos atrapalharam-se-lhe no roto das alpargatas e num pedaço de nastro imundo que lhe sobrou do interior dos trapos que lhe serviam de calças.
Dormira ali mesmo, e já não fazia tempo para dormir, assim, tendo por tecto, não as estrelas e o céu muito negro e alto, como semelhavam os céus de Estio, mas este céu de chumbo a querer desabar.
Desramelou-se com dois dedos da mãe esquerda que, com a outra mão, ele colocou ao ombro o bornal que lhe servira de travesseiro, e foi seguindo pelo caminho de terra e pedras soltas que levava ao povoado. O corpo seco, muito erecto, parecia buscar uma antiga dignidade, uma perdida juventude. Levou a mão ao bolso do casaco que ele mesmo remendara: pontarelos negros a segurarem restos de uma sarja que já fora azul. Tome, diziam-lhe, e ele agradecia e nem reparava se era o seu tamanho. Desagradecido, dir-lhe-iam se recusava. As criadas, sobretudo elas, eram altivas e cruas. Ele aceitava tudo de olhos baixos. Hoje, teria sorte de encontrar quem lhe desse um naco de pão e umas azeitonas. Tirou do bolso o que seria de comer pois que meteu à boca. Era um courato ressequido que saberia a ranço e com ele foi entretendo o estômago. Na esquina caiada de um muro de quinta, buscou a porta de serviço. Aguardou uns instantes. Não tocou. Raramente o fazia. Antes aguardava que alguém da casa entrasse ou saísse. E ali estava. Remexida na saia que roçava a soca de madeira, surgiu na azinhaga uma rapariga. O toucado e o avental diziam que era serviçal e ele estendeu a mão, os olhos por terra e, quando a rapariga estava a dois passos da entrada, balbuciou, sempre de olhos baixos: um niquinho de broa pelo descanso de todos os da casa. A rapariga desviou-se dele e, murmurando, um salve-o Deus, abriu a porta e passou para dentro o corpo roliço e mais a cesta que trazia no dobrar do braço. E fechou a porta e o fechar-se da porta deixou no ar um ruído seco.
Ele ficou ali, de pé, hirto numa espera que desejava pródiga em esmola, e foi mirando, distraído de si e daquele ficar ali esmolando, os pormenores da pedra rosada que contornava a porta, cantaria talhada por mãos de artista. Demorou os olhos na corda esculpida: tão parecida que semelhava, embora fosse pedra. Estava nisso, quando a mesma rapariga apareceu ao postigo. Notou-a gaiata. Espreitando na janelinha estendia-lhe um pequenino embrulho: papel gorduroso que ele recebeu nas mãos em concha, balbuciando que Deus abençoe a todos nesta casa, e já a rapariga se recolhia fechando a portinhola sem ruído.
Espreitou o papel amassado de ter servido outros embrulhos e sorriu-se a olhar o pedaço generoso de pão de centeio e os ossos ainda salpicados de peles de borrego. Percebeu que era borrego pelo cheiro, e o estômago pediu-lhe um pedaço. Aquietou-o aspirando fundo aquele odor de comida e tirou um pedacinho de miolo do pão que colocou na língua a chupar-lhe o doce. Comeria o resto mais logo. Comeria quando percebesse se aquele lhe devia servir de almoço ou se seria mais sensato deixá-lo para a ceia. E meteu o embrulho no bornal esburacado que trazia ao ombro. A aquietar aquele alvoroço do corpo a tentá-lo, buscaria água na fonte que havia antes de despontar o casario do povoado; e colheria fruta nalgum galho dependurado num valado. Ameixas que ainda as haveria nas árvores. E foi seguindo caminho, vagaroso, a cismar nos figos que nem sobrariam, pecos, nas figueiras. Colheria de bom grado, uns quantos. 
imagem Mendigo de Mihaela Mihailovici 2013

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