Não se lembrava de quantos anos tinha
quando ganhou sua espingarda de chumbinho. O primeiro pássaro morto por suas
mãos levou-o às lágrimas, constrangendo-o diante do severo olhar paterno. Mas, depois
de muito lutar contra o próprio arbítrio, acostumou-se a caçar pardais e
colibris incautos, estivessem eles em pleno voo ou zelando, no conforto de seus
ninhos, pelas crias mal saídas dos delicados ovinhos.
Perdera ainda cedo a empatia pela vida das
criaturas que não partilhavam de sua imagem e semelhança. Em seus ombros
bubalinos feitos para transportar cadáveres, pendurava jovens raposas como mórbidos
troféus. Também desaprendera a chorar e não conhecia mais o arrependimento.
Quando homem feito, matar pequenos animais
acabou tornando-se uma tarefa molesta. Não. Não se tratava de piedade. Era mais
uma sensação de pouco valer à pena tirar a vida de criaturas vulneráveis, incapazes
de revidar. Muito cedo o pai dera-lhe a missão de manter o rebanho livre do
ataque dos predadores. Nenhuma ovelha deveria ser trucidada caso se desgarrasse
de suas iguais. Assim, passara a abater as onças da região. Era um caçador dos
melhores. Mas, antes de tudo, um pastor. Sempre que os grandes felinos se
aventuravam sobre o rebanho, mirava uma das pintas castanhas e, após o tiro
fatal, divertia-se com a fuga desastrada e inútil através da mata que
circundava o pasto onde as ovelhas se espremiam umas contra as outras, tolas,
como toda vítima (Dia e noite, guardadas por um pastor incansável e de pontaria
extraordinária, aquelas tolas ovelhas).
A dedicação daquele moço não se devia à
fragilidade do rebanho e nem à busca por aprovação paterna. A bala fumegante
nunca errava o destino porque seu trajeto orientava-se pela sanha mortal de um matador.
Assistir à vida escoar do corpo de suas presas causava-lhe prazer sexual, sentia uma quentura libidinosa excitar seu sexo sempre que um grande
felino tombava morto, a língua posta para fora da boca ensanguentada enquanto o
abdome trabalhava para nada. A morte de um passarinho jamais entranharia em seu
íntimo tão divina sensação de poder, de autoridade superior até mesmo àquela
exercida por seu pai.
Um dia, despertando com olhos suplicantes
de um sonho terrível, o velho implorou para que ele se tonasse um homem bom. Um
homem bom. Bom em quê? Na caça? No pastoreio? Era bom em tudo o que fazia.
Tudo. Mas, não era isso. Seu pai falava de outra bondade. Todavia, como ser
bom? O que é ser bom? O que vem a ser essa coisa gasosa, sem forma, intangível,
chamada bondade? Trata-se de uma condição do caráter? Será um hábito adquirido?
Ou a bondade é um estado de espírito? Não. Não saberia ser bom. Como ser bom a
despeito das coisas sombrias que sentia, apesar da falta de remorso a cada
lobo-guará surpreendido por seu rifle, cada gato selvagem degolado por sua faca
de caça? Sabia-se mau, sentia-se mau e acostumara-se a ser mau. Ser bom era um
pedido impossível e uma aspiração irrealizável.
Mesmo assim, tentou fazer dormir o
assassino e acordar dentro de si o melhor dos homens. Era tarde. Quanto mais
desejava ser bom, maiores se moviam em sua direção as correntezas de sangue e
vísceras, as carcaças esfoladas, as bocarras abertas, os ventres expostos.
Jamais seria bom. Jamais. Não depois de ter zombado de toda a vida esmiuçada
por suas mãos.
Enlouquecido, o rifle atravessado sobre
as costas, largou o pai delirante sobre a cama e correu pelo pasto tropeçando
nas ovelhas, fazendo-as correr como nunca haviam fugido nem mesmo do mais
selvagem dos predadores.
Ao avistar o irmão roçando a lavoura
que não saciava os apetites de um pai carnívoro, atirou-se aos pés fraternos.
O que há? Qual a razão desta correria? Abateu-se
sobre ti alguma desgraça?
Anda, toma de minha arma. Esfacela-me o
crânio que abriga um monstro!
Enlouqueceste? Por que eu ferir-te-ia?
Tu és meu irmão! Acaba de vez com minha
angústia, senão carregarás por toda a vida o peso de meus crimes!
Teu crânio não abriga monstro algum,
mas, decerto, também não acolhe mais a razão...
Faz!
Não! Percebe a gravidade do que pedes! Por
que eu seria executor de meu próprio irmão?
Ai, ai, ai. Não posso ser bom. Não sei
ser bom. E agora me parece a bondade a mais preciosa das coisas terrenas. Não
quero viver sem experimentá-la. Tu és tão virtuoso. Lavras o campo e fazes a
vida rebentar das sementes, enquanto atraiçoo os animais da selva. Anda, liberta-me
com tua benevolência ou tornar-me-ei o carrasco do mundo!
O que direi ao pai quando ele perguntar
por ti?
Sem olhá-lo nos olhos, afirma que não me viste.
Mas, Abel...
Atira, Caim!
Emerson Braga
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