Dia
10/8/16
Mais
uma vez — como todos os verões — vim passar duas ou três
semanas na minha terra, esta lindíssima vila de xisto e granito no
vale do Alva. Como é bom rever e reviver as paredes de setenta
centímetros da minha casa rústica e a sua frescura interior. E
espero encontrar os amigos e os familiares, mesmo os emigrados, que
“obrigatoriamente” aparecem no verão. Todos querem aproveitar a
reunião inusitada para animar a vila com festas, encontros e
comezainas.
Como
desde há três anos, vou a um almoço dos nascidos em 1944, à
semelhança do que fazem os nascidos noutros anos. O almoço é o
pretexto para o encontro e a partilha da alegria de estar (ainda)
vivo. Reveem-se os conhecidos, reconhecem-se as parecenças antigas
por baixo das rugas modernas dos que vêm pela primeira vez,
atualiza-se a fisionomia que cada um guarda do outro.
Dia
14/8/16
O
Nunes está todo encarquilhado. A Georgina agora é loira.
― Lembras-te
daquela vez que te abri a cabeça à pedrada? — perguntou-me o
Ramos.
― Lembras-te
de me fazeres serenatas, mais o Manel da biciclete? — tentou a
Marisa.
As
lembranças são um amontoado de tralha pessoal inútil, falsificada
pelas ruminações, em que não consta a maior parte dos registos que
os outros guardaram. Lembro-me dos folhos da Matilde, na igreja;
lembro-me das reguadas que apanhei por causa do Zé Caçoila. O
resto? Sei lá! Deve ter acontecido, se eles o dizem... O mais
importante mesmo deve ser o encontro com pessoas do mesmo grupo
etário. Ainda que não nos lembremos uns dos outros, temos
lembranças no mesmo contexto, porque vivemos no mesmo ambiente, em
certo tempo, mas, se calhar, o mais importante é que somos da mesma
idade. Como estamos a viver a nossa reforma, a nossa velhice
galopante? Vivemos para o futuro ou do passado?
― Vocês
viram ontem a chuva de estrelas cadentes? ― lançou um tipo de
cabelo branco, mas ainda farto, quase à minha frente.
― Quando?
Ontem? Não soube de nada! ― disse uma. ― Eu à noite vou para a
caminha ― respondeu outro. ― Chuva… ― desdenhei eu. ―
Estive uma hora num caminho escuro da serra, mas só vi umas cinco.
― Aquilo
é um espetáculo fabuloso, não achas? ― prosseguiu o aficionado
sideral, dirigindo-se-me decididamente.
― Acontece
todos os anos por esta época, não é? ― comentei, tentando
mostrar algum conhecimento. ― Parece que são meteoritos que vêm
da constelação de Perseu.
― Não
é bem assim ― contestou ele, sem alarde. ― São restos da cauda
de um cometa que passou por aí.
― Interessas-te
por astronomia? ― perguntei, meio que para fazer conversa.
― Eu
interesso-me por tudo ― afirmou, categórico. ― Tem de ser, se
não quero deixar enferrujar os neurónios.
Os
outros tinham-se entretanto alheado da conversa, que se tornara
nossa, e falavam dos colegas que tinham morrido, desde o último
almoço.
― Já
viste o que nos espera, se não nos soubermos precaver? ― insinuou,
apontando os circunstantes com o queixo.
No
resto do almoço, tornou-me seu cúmplice num discurso de meias
palavras, que se tornou enfático quando, após os pratos quentes,
deambulámos pelas mesas dos queijos e dos doces:
― Convence-te!
Nós pertencemos à praga grisalha que só atrapalha. Cada vez somos
mais a papar reformas. Que país é que aguenta isto? Passeamos,
banqueteamo-nos, consumimos e não produzimos nada, já viste? Que
planeta é que suporta isto? Não há recursos que aguentem. Somos
uma praga.
― Recebemos
reformas, mas trabalhámos para elas ― tentei argumentar.
― Mas
agora somos uns inúteis. Uma sociedade bem organizada, sem tolerar
desperdícios, devia descartar esta praga.
― Mas
isso é fascismo! ― indignei-me. ― Felizmente que a esperança de
vida aumentou! Querias instaurar uma espécie de eutanásia por
caducidade de prazo da validade produtiva?
― Olha,
porque é que não vens almoçar connosco um dia destes? Tenho um
refúgio paradisíaco nos altos da serra do Açor. Podíamos falar
deste e doutros assuntos aliciantes que ameaçam a Humanidade.
Apesar
da minha relutância inicial, dei por mim a sentir uma curiosidade
genuína pelas ideias dele e pelo modo de vida que levaria no tal
refúgio serrano.
17/8/16
Às
onze apresentei-me em Vide e fui conduzido por um trilho de terra
batida que serpenteava pelas faldas da serra até desembocar numa
espécie de côncavo arborizado com umas vistas de tirar o fôlego. O
local parecia uma quinta de experimentação pecuária e botânica.
Vários animais estavam confinados a espaços criteriosamente
concebidos, em microambientes bióticos, com plantas específicas
para cada animal. Alguns pareceram-me ligeiramente mutantes, como um,
semelhante a um pequeno urso, que se alimentava de cenouras.
― Conseguimos
produzir cenouras com um alto teor de proteínas. A carne vai
tornar-se um bem escasso num mundo como o nosso ― argumentou o
Martins, o nome do meu insuspeito amigo de infância.
A
esposa tinha preparado um almoço delicioso, com beringelas que
sabiam a salsichas alemãs, beterrabas amarelas, com sabor a pato, e
carne de cabrito que sabia mesmo a cabrito… Com sabor a vegetais,
havia outras iguarias muito desleixadas pela maioria dos produtores
agrícolas: figos de cato, juncos e fatias de uma espécie de meloa
vermelha.
A
conversa decorreu animada, mas encaminhou-se para rumos totalmente
inesperados, apesar da conversa no almoço dos contemporâneos.
São
versados em teorias da conspiração. Afirmam que os governos
mundiais estão tomados por interesses estranhos, e que usam muitas
técnicas de condicionamento. Dizem que os aviões dos governos
espalham químicos na atmosfera, para nos tornar dóceis; que estão
a ser aplicados “chips” nos recém-nascidos para monitorização
de tendências antissociais; que existem muitos extraterrestres no
planeta a preparar a invasão, com a conivência dos governos; que
eles querem invadir o nosso planeta, porque ainda não conseguem
produzir a carne que os nossos animais produzem com tanta facilidade.
Eu
reagi, mais divertido do que assustado:― Mas por que é que vocês
suspeitam disso tudo? Têm alguma prova de qualquer dessas teorias?
Então
o meu amigo de escola primária, de quem eu não me lembro, abriu-se
em revelações, talvez por achar que eu não iria acreditar nele,
talvez porque não tinha nada a temer. Disse que, na verdade, ele e a
mulher são extraterrestres; que estão na Terra outros duzentos mil;
que a vida no seu planeta se tornou assustadoramente claustrofóbica,
devido à praga grisalha que lá se tornou quase imortal; que a
absurda quantidade de carne necessária à alimentação de tanta
gente obrigou-os a socorrerem-se de outros mundos; que a obtenção
de carne humana é a prioridade atual, dado o seu sabor sofisticado,
parecido com o do cabrito, mas queixou-se da imprevisibilidade do
fornecimento proporcionado pelas guerras.
Eu
estava abismado, mas arrisquei uma piada, para amenizar a situação:―
Caramba! Ainda bem que eu já não sou novo e que a minha carne deve
ser rija. Só se fosse para ensopado de bode...
Eles
não riram com a piada, ou antes, pareceu-me detetar um ténue e
síncrono sorriso a iluminar-lhes o rosto. A conversa alongou-se
ainda por várias horas, apesar de alguma inquietação latente
minha, mas eles continuaram simpáticos e hospitaleiros. De tal modo
que aceitei o convite para jantar e dormir aqui esta noite, neste
paraíso natural e incrivelmente sossegado.
Estou
a ficar com sono, mas não quis deitar-se sem registar os eventos
deste dia incrível, enquanto ainda estão frescos. Amanhã podia não
me lembrar.
Joaquim
Bispo
*
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Imagem:
Fernando
Botero, Casal,
1999.
*
* *
(Este
conto integra a coletânea A
Arte do Terror — Volume 4,
da Elemental
Editoração, 2017, pp.
174–176.)
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9 comentários:
Pois é, eu depois dessa conversa não dormia lá porque não tinha a certeza se não iria virar ensopafo ou chanfana...
Os nossos amigos... As nossas memórias (não as da "Casa Amarela")... As nossas brincadeiras... As nossas ambições... Os nossos sonhos... Os nossos fracassos... Enfim, as nossas vidas... Tempos que já não voltam, mas que teimosamente teimamos em lembrar... Muito interessante. Um Abraço. Saúde.
No dia seguinte quando acordas-te estavas a ser cozido em lume lento,pois a carne velha necessita de muita cozedura.
NO bode velho o tempo de cozedura é maior.
parece-me que desta vez ainda te safaste...
Pois é, anónimo, mas depois ficávamos sem final para a nossa história...
Obrigado pela leitura, Carlos Vale.
Abraço!
André Valente e António Baptista, o caso não foi comigo, foi com o desditoso escrevinhador que usava uma agenda como diário, a qual me chegou às mãos. ;)
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