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sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Muito injusta essa vida



Meu nome é Gorete Silva Santana e estou aqui por justiça e merecimento.

No dia 11 de junho de 2010, desci no ponto mais perto da minha casa,
depois de um dia de serviço no apartamento da Dona Marcela. Para seu saber:
era diarista e dava para viver com a mixaria que recebia de duas casas de família.
Gente boa, bons patrões, me tratavam bem, mas não assinavam minha carteira porque
eu não trabalhava todo dia. Melhor assim. Viúva, cinco filhos para criar, um
amasiado biscateiro e pinguço, não dá pra ficar pagando imposto pro governo.
Metia as diárias na bolsa, tudo nota enroladinha, e entrava na condução rezando
para não dar de cara com vagabundo com canivete ou três oitão na mão.
Várias vezes perdi o dia de serviço assim.

Voltando ao dia 11 de junho de 2010, avistei um reboliço na minha casinha no
alto da subida. Ouvi gritaria de criança, voz grossa de homem e barulho de coisa
quebrando. Foi me dando uma quentura nas pernas, parecia um troço me empurrando,
subi correndo como nunca tinha subido. Acho que larguei as sacolas pelo chão,
sei lá, só sei que entrei tremendo em casa e logo da porta me deu ziquizira nas tripas.
Minha filha mais velha de 15 anos de nome Monique jogada no chão sem calcinha e com
o uniforme da escola rasgado. No cantinho da geladeira, os quatro menores, tudo
tremelicando agarradinho chorando baixinho. Do lado da cristaleira quebrada no chão,
Norival segurando um pé de cadeira cambaleava e bufava com olho de diabo para mim,
para minha filha mais velha, para minhas crianças, para a imagem de Nossa Senhora
de Aparecida caída no rodapé. Ele gritava que quem contasse ia morrer.

No meio da tarde do dia 11 de junho de 2010, Monique chegou da escola na hora de
sempre, encontrou Norival esparramado no sofá da sala encachaçado como todas as tardes.
Até aí nenhuma novidade. Só que ele levantou se escorando na mesa, baixou o calção
e partiu para minha filha, falando mansinho, dizendo que queria dar vida boa pra ela.
Era só ela fazer um carinho nele e deixar que ele fizesse um carinho nela. Disse
baixinho na orelha da menina, já imprensando a pobre contra parede e arrebentando
o colchete da saia, baixando a calcinha, lambendo ouvido e tapando a boca dela.
Monique ficou que nem estátua apavorada, sentiu um ferro quente se enfiar entre suas
pernas e soltou um urro abafado pela mão do Norival. Mas mesmo assim, logo depois daquela
coisa furando que nem broca na parede, conseguiu se debater, até que um braço escapuliu
e alcançou a cristaleira, que foi derrubada e fez um barulhão danado. Meus outros filhos
que estavam vadiando no quintal correram para dentro de casa e começaram a gritar.
Norival ficou doido. Doido bêbado no flagrante de malfeito vira monstro.
Meteu vários tabefes na Monique e saiu quebrando tudo na sala, enquanto espumava
viu o que você fez, viu o que você fez? Agora descobriram tudo! Quebrou a cadeira e
partiu para as crianças e quase deu com um pedaço de pau na cabeça da menorzinha,
não fosse a imagem de Nossa Senhora da Aparecida que Monique arrebentou no quengo dele.
O infeliz rodopiou, e mesmo torto, teve jeito de dar uma rasteira na minha filha,
que também caiu. Foi nessa hora que cheguei.

Na noite de 11 de junho de 2010, tudo estava mais calmo. Apesar de no primeiro momento
quase perder a cabeça e entrar na doideira que baixou lá em casa, olhei a santa espatifada,
fiz o sinal da cruz e ganhei serenidade. Norival tinha acabado de perder os sentidos e
Monique pulou em mim com um abraço tão forte quanto o aguaceiro que descia dos olhos.
As crianças se enroscaram nas minhas canelas e senti o soluço delas subir nas minhas pernas.
Ficamos naquele estado de gente embolada e empapada durante um tempo que nem sei contar,
sem dizer uma palavra, só pensava comigo mesmo: já deu, já deu, já deu. Ninguém me devia
explicação. O estado de choque em que encontrei Monique e meus outros filhos não carecia
de palavra. Norival continuava babando e roncando no chão e nem liguei pro ferimento na nuca
que não parava de sangrar. Só depois de dar água com açúcar para as crianças e ouvir de
Monique os detalhes do ocorrido, segurei as vontades de matar o patife e levei os cinco para
casa da vizinha, a Dona Edith, que não cansava de me avisar: esse Norival não presta.
Quando voltei, tive força para levantar o traste e começar a cuidar do rasgo na cabeça.
Botei um pano para segurar o sangue e grudei com esparadrapo. Ele fez que ia acordar, joguei
água na cara dele. Meio estonteado, começou a gemer o nome da minha filha e xingar coisas
horríveis a respeito da minha pessoa. Jurava que Monique vivia dando em cima dele nas minhas
fuças e eu idiota nem percebia. Mentira. Minha filha tinha nojo do padrasto.. Várias vezes me dizia
que Norival andava olhando a bunda dela com olho esquisito, dava beliscão, batia a língua pra
ela, mas eu burra não queria enxergar maldade no homem que na cama me fazia bondade.
Só na cama, para bem da verdade.

Logo depois da meia noite, já 12 de junho de 2010, resolvi entrar na conversa dele
e desconjurar minha filha também. A porranca estava sarando. Passei café, botei ele debaixo
do cano de água fria, enxuguei cada pedacinho do seu corpo, troquei o esparadrapo e levei o
troncho pro quartinho, fazendo cafuné e demostrando todo meu carinho e compreensão.
Deitei Norival nu de barriga para cima, disse palavras calmas e carinhosas, disse que ia
dar um jeito em Monique, disse que ela era novinha demais para ficar se assanhando para homem
com dona, disse um monte de coisa tesuda enquanto o troço dele endurecia na minha mão, ao
contrário do resto do corpo que amolecia e se entregava ao carinho que só eu sabia carinhar.
Quando ele já estava bem grandão e pulsando gostoso, pedi licença para passar água e sabonete
nas partes só pra ficar cheirosinha como ele gostava de lamber. Norival começou a mexer a cintura,
suspirar fundo, soltar uns grunhidos baixinho e fechou os olhos. Antes de ir ao banheiro, reparei
se o esparadrapo tinha se soltado, vai que sujava de sangue o travesseiro?  Tudo certo.
Ele continuava naquele estrebucho de macho quando quer foder, nem reparou que não
fui ao banheiro coisa nenhuma. Fui é pra cozinha, voltei com um litro de álcool e uma
caixa de fósforo. Ele continuava gemendo de olho fechado e tomou um susto quando
joguei álcool no piruzão duro e na barriga dele. O álcool se espalhou pela carapinha em volta
e escorreu pelo saco, se enfiando pelo cu. Não deu tempo de reação porque na mesma hora
risquei o fósforo. Ele saiu gritando pela casa, parecia um homem tocha, porque era muito
peludo e o fogaréu se alastrou rápido. Enquanto eu abafava o que restou de fogo no lençol,
ele alcançou o quintal e ficou rolando na terra, desesperado, pra lá e pra cá,
mas não adiantou muita coisa.

Hoje é dia 23 de dezembro de 2015. Estou no lugar que mereci. Minha vida acabou e só tenho
lembrança ruim, principalmente daquele dia desgraçado. Quando os bombeiros e a ambulância
chegaram no sol nascendo me encontraram em pé ao lado do Norival. Pouca gente tinha acordado
até então, mas as sirenes fizeram um monte de curioso rodear o muro do quintal. Só deixei
entrar Dona Edith, que me abraçou e entendeu tudo. Gorete, Gorete... não disse que ele não prestava? Perguntei pelos meus filhos. Estão dormindo que nem pedra. Acho que foi o trauma. 
Logo depois chegou a patrulhinha. Eu me entreguei e contei tudinho sem arrependimento.

Amanhã é véspera de Natal. Estou no pavilhão das mulheres, numa cela com vinte uma, onde só
cabem dez. Paciência. Eu mereci. O advogado da defensoria pública alegou privação de sentidos,
essas coisas, não é assim que eles dizem? Mas eu mesmo falei pro meritíssimo que fiz tudo que
meu juízo mandou. A bem da verdade só queria aleijar o pinto dele, mas Deus lhe mandou uma
infecção generalizada misturada com cirrose e ele foi pro inferno mês depois. Fui condenada
por crime premeditado seguido de morte. Não é assim que eles dizem? No fim das contas,
acho que fizeram justiça. E eu do meu jeito também fiz. Ainda tenho 9 anos aqui dentro,
revezando colchão para dormir e falando muito pouco com as colegas. Elas não sabem nada
da minha vida. Tenho medo que elas descubram que eu acabei matando meu homem
com requintes de crueldade. Não é assim que eles dizem?

A única dó que eu sinto é não ver meus filhos crescerem.  Dona Edith esteve aqui somente
uma vez, logo nos meus primeiros dias. Pode deixar, vou cuidar de suas crianças. Depois
nunca mais. As colegas dizem que é assim mesmo, que mulher não recebe visita.
Ninguém aparece. Nem filho, nem marido, nem namorado, nem amante, nem pai, nem mãe.
Não é porque é proibido. Não é proibido não. Homem e familiares é que não ligam para mulher ladrona, assassina, traficante, trambiqueira. No pavilhão deles é diferente. Dia de visita a fila
de mulher dá pra mais de três voltas no quarteirão. Diz a carcereira que hoje, então, é dia de
fila dobrada. Bando de mulher carregando sacola com frango assado e rabanada.
Chegam de noite, dormem na calçada e ficam horas torrando no sol, uma atrás da outra,
até que passam na revista e entram.  Só para fazer visita íntima. Dizem que trepam rapidinho,
na cela mesmo, atrás de uma cortina feita de roupa pendurada num varal. Os homens sabem
se ajeitar e não vivem sem xoxota, senão dá motim.

Monique nunca veio me visitar. Muito injusta essa vida.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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