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segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Desbunde

Ela é toda abundância. Completa, inteiriça. Exceto a popa tímida, desenxabida, quase côncava na banda esquerda. E sente-se, por conta da  depressiva nádega, qual camelo manco, um nada quase, desabundante de tudo.

Certamente o espelho trabalha para Camila enxergar nele refletidos, com realce, os lindos lábios carnosos. Quando alaranjados cintilantes, eles trazem calor e alegria a qualquer ambiente. Quando adentram o bar da esquina da nossa rua, aliciam este homem, despeitam aquela mulher. Difícil se esquivar daquela boca convite. Mas Camila sorri um pouco só na chegada e logo se retrai, limpando o batom no guardanapo. Sempre preocupada com o pequeno defeito traseiro, não valoriza os encantos que lhe vão à frente.

Não se alegra, por exemplo, com o belo casal de seios que porta na fachada: unidos, parceiros, vultosos, aprumados. Um exagero! Para uma senhora de quase 50, dádiva das mais preciosas. Quando usa decote, escandaliza formosura. Mamas jovens, túrgidas, deliciosamente protuberantes. Mas ela não se beneficia da situação. Vai repetindo atitudes pessimistas, mergulhada no drama da deformidade posterior, negando-se à alegria, ao amor-próprio. Recolhida, Camila arqueia as joias e desiste da luta.

Conta também com dois braços firmes e funcionais e duas pernas grossas, torneadas na boniteza. Movimenta-se com desenvoltura, carregando pesadas sacolas do mercado até a casa. Despede-se de mim num aceno delicado que deixa exibir os belos tríceps na cava da manga da blusa. Carnes pregadas que não despencam, ano após ano, sem pelanca, estria ou celulite. Mesmo assim, muito nova desistiu de aceitar abraços. Preferiu o exílio da cama vazia. Nutre preconceito incurável contra si mesma. Ofende-se sempre, envergonhada pelo naco ausente, e não aceita elogio.

Há uns três anos, fez procedimento estético tópico. Mas o silicone enxertado não aderiu. A almofada acessória zangou. O vão ficou um pouco mais fundo e deixou Camila arisca. Agora ela quase nem se arrisca a cumprimentar os colegas.

Eu só queria aproveitar as festas de fim de ano para lhe dizer que há problema mais insolúvel no mundo. “Tem gente com fome”, “Tem gente sem água”, “Tem gente em guerra”, “Tem gente sem dente”, “Tem gente sem caráter”, “Tem gente que não presta”, “Tem gente que já morreu”, “Tem gente que perdeu a bunda inteira”. Eu só queria lhe mostrar as tantas virtudes. “Você canta”, “Você escreve”, “Você cozinha”, “Você está viva”, “Seu direito é lindo”. Mas não funciona. A vizinha continua teimando em se reduzir à parte defeituosa, contrariada com a lacuna na banda esquerda. Sofro por não lhe confessar meu maior segredo: adoraria me divertir naquela retaguarda assimétrica, naquele playground sugestivo dela. Peno porque ela se menospreza e não me dá espaço.

Sob nenhuma luz, às escondidas, ou diante da vizinhança, multidões, pisca-pisca, vaga-lumes, queima de fogos, sol a pino, eu seria o homem mais pleno, mais feliz do mundo se pudesse desfrutar do exagero divinal, da abundância que é Camila.


Maria Amélia Elói

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