Ele se senta à minha frente. Não comigo. Apenas em frente. Toda manhã tomamos juntos o café fumegante da lanchonete da esquina. Sem nunca termos nos falado ou tocado. O lugar é simples, quase vulgar, mas perfeito para quem tem paladar.
Ele gosta de pão na chapa. Dois. O café sem açúcar e no copo. Copo de vidro. Nada de xícaras na lanchonete da esquina. Ele come de boca fechada; bem-educado. Concentra-se no pão, e cada mordida revela uma boca ávida, decidida. As mãos têm unhas curtas, bem aparadas, limpas, quase uma exceção entre os homens. Mas ele é um homem. Indiferente a tudo que não seja o momento. O corpo bem feito agasalhado por uma jaqueta de couro que grita seu preço.
Ela se senta atrás dele. Toda manhã, também. Lugar-comum. Como se fosse um encontro marcado. A mesa de madeira à frente dela — atarraxada no chão por pregos grosseiros que desafiam a lei de ocupação dos espaços públicos — tem rabiscos entalhados, feitos à chave. Um copo de café com leite, um pão grelhado, uma fruta. Maçã, invariavelmente. Observa tudo em volta, sem pressa, até que os olhos se perdem em alguma coisa que vem de dentro. Memórias que doem, talvez. Mas ela os resgata do vazio, obrigando-os a orbitar novamente este mundo. Logo após a refeição, recolhe com a ponta do indicador as migalhas do prato, levando-as à boca num gesto infantil. Unhas pintadas de um rosa esmaecido. Tão sem graça quanto ela. Cabelos sem corte, castanhos como os de todo o mundo, presos num coque irregular no alto da cabeça. A boca sem batom, as orelhas sem brincos, a armação escura dos óculos escondendo os olhos ciclotímicos. Uma sucessão de insignificâncias.
Em algum momento de uma dessas manhãs, ele se levantará para repetir o hábito de pagar a conta no balcão. Subitamente tonto, vai cambalear e tropeçar em algumas cadeiras, sentando-se em seguida para tentar melhorar. Só então se lembrará do diabetes que negligencia por medo. Mas estará muito fraco para cuidar de si mesmo. Em dois passos, ela chegará até ele. Uma pergunta; uma confirmação. E ela ordenará ao atendente, com urgência, um copo de café, dentro do qual despejará um, dois, três dedos de açúcar. Ele beberá aquela gosma de uma vez, queimando a língua. O pior da crise passará. E, logo, a mão dele, de unhas curtas e limpas, apertará a dela, de unhas insossas. Ambos seguirão até o consultório dela, no mesmo prédio que a firma dele. Exames serão pedidos, orientações dadas, telefones trocados.
Ninguém sentado hoje à minha frente. Mais ao fundo, quase no fim do toldo, imagino ver, por um instante, o homem da jaqueta de couro explicando alguma coisa à mulher de unhas cor-de-rosa. Ela ri com a mesma boca sem batom e ajeita os cabelos ainda presos no coque desleixado. Só os olhos, agora, são outros, esvaziados de memórias que doem. Mas o instante foge. Lá, no fim do toldo, não tem ninguém. Sou apenas eu fabricando um roteiro pobre. Eu e esta vontade ordinária de que ainda haja encontros por aí.
4 comentários:
Você e esta mania extraordinária de criar belos personagens e encontros inesquecíveis. Bjo!
Só uma sensibilidade superior para expressar numa "sucessão de insignificâncias" o desejo universal do encontro. Suas personagens saltam do papel e nos convencem de que tudo é possível, só que não. Seu texto coloriu meu sábado. Bj
Obrigada, Maria Amélia! Bjs
Querida Luci, muito obrigada! Que bom! Beijo grande.
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