Eu
tive um sonho.
Sonhei que, ansioso para dar a primeira
e mais prazerosa mijada do dia, eu cambaleava pela casa. De olhos fechados e
calções arriados até a altura dos joelhos, fiz com que o som do jato de urina contra
a água do vaso descerrasse minhas pálpebras. Olhei sonolento para a sombra da
girafa, encolhida e mal acomodada por detrás da cortina de plástico. Como uma
súplica, sua cabeça deslizou para fora e então vi que ela estava com sede. Antes
de escovar meus dentes, permiti que o mamífero artiodátilo ruminante de
estimação esticasse o pescoço por debaixo de meu braço e tragasse o fio de água
que escorria da torneira. De língua rugosa e desastrada, também engoliu os
comprimidos caídos na pia.
Sim.
Em meu sonho eu criava uma girafa, e isso não me causava nenhum embaraço. Ela
vivia em meu banheiro e demonstrava estar mais à vontade ali do que jamais
estaria nas savanas africanas. Gostava da umidade, da acústica, do escuro.
Acordei sobressaltado com a
extravagância do que me parecera uma cena cotidiana, familiar, quase enfadonha.
Uma girafa e eu, assim, como um labrador e seu dono cego, companheiros há
décadas, enfastiados por toda uma vida em comum. Nada entendo de simbologia e
pouco me lembro das aulas de semiótica. Uma figura saída de um safari etíope — desajeitada,
com cascos que deslizavam sobre os ladrilhos — deve ter algum significado para
a psicanálise ou para os esotéricos da Nova Era. Quem sabe também tenha um para
mim. Entender o sonho talvez forneça algum sentido para minha vida tão reta e
plana, tão limpa e seca. Tão breve.
O que
me diz a girafa? Sua sede, o que indica? E o fio de água? Os comprimidos? Qual
o significado de um animal ungulado entre um chuveiro e um vaso sanitário? É um
enigma. Se eu decodificar sua linguagem obscura, talvez seja premiado com um
fim mais próximo da luz, de um milagre. Um desfecho olhado lá de cima.
Desde
que acordei hoje, senti que, interpretado o sonho, também estariam traduzidas
minha própria existência e sua misteriosa razão. Durante todo o dia ocupei-me
em desvendar a charada de Hipnos e Morfeu. Logo eu. Eu que quase nunca. Ou
nunca.
“As
girafas possuem um sistema vascular responsável pela maior pressão sanguínea do
reino animal.” Não sei onde li isso e nem mesmo se é um dado confiável, mas
passei parte do meu dia acreditando que, durante meu asseio, eu sofreria um aneurisma.
Bobagem. Nada na vida é tão fácil.
Desalentado,
passo as duas mãos por meu rosto e sinto ácaros passearem por ele. A pele
áspera. A barba por fazer. Levanto do sofá e caminho até o espelho disposto na
parede feia de minha sala. Observo meu pescoço magro, longo, amarelado e comido
de sarcomas. Ainda ontem estas nódoas castanhas não eram tantas. Encaro minha
febre e meus calafrios, minha dor de cabeça e meus olhos submersos, meu suor e
minhas câimbras musculares. O exame aberto sobre o tapete da sala, como uma planta
carnívora.
Tenho
sede. Sei onde estão os comprimidos. E, bem aqui ao lado, é meu banheiro.
Emerson Braga
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