Chaos, de Jenot Jean Marie
O movimento das formigas pelas veias da cidade me faz cócegas. Pequenas carcaças picando a minha carne-armadura. Pequenos monstros que seguem rotineiramente, tediosamente traçados e linhas. Eu escapo das coisas retas. Sou a assimetria dos bueiros enferrujados escondendo a podridão dos dejetos. Sou as torres dos arranha-céus que lembram bicos desbotados de tucanos. Ferro e ferro.
O olho vermelho me liberta. A seu comando, sou novamente fuga. Sigo em direção ao sol. É só para lá que me ensinaram a ir. Para trás, paisagens-construções vão se tornando pontos e traços e círculos e chapéus de bruxa. Esfumaçados. Crayons semiapagados pela borracha de algum criador dividido entre o construir e o destroçar.
A língua que desliza agora sob as solas gastas dos meus sapatos migrantes é serpente lenta. Não me faz mal. Piso o seu couro áspero, mas ela não arma o bote. Ela sabe de mim. Que sou passante. Que tenho medo de pecados e de sinas. Que não é preciso peçonha para derrubar o meu corpo irresistente de ossos e sangue. Que basta me hipnotizar como aos pássaros que ela faz tombar dos galhos, sem grito e sem gemido, até a morte consumada. Mas ela não me quer.
É de cimento insosso e cinza o chão que me sobra. Meus pés-esquadros traçam perpendiculares entre as trilhas de abandono que vou reconhecendo no trajeto. Nem metal nem solados se interpondo entre a minha pele e as superfícies. Apenas pés descalços através dos quais escoo à força o choro dos meus olhos cansados de ver demais. Quero os meus olhos secos. Estancados de sangradouros e tempestades que se anunciam escandalosos em convulsão de soluços. Secos para enxergar os riscados invisíveis da vida que respira atrás das portas. Para observar equidistâncias. Para antever no papel a arquitetura insidiosa que cria espaços de dominação e miséria. Para antecipar explosões multidirecionais de ferro, concreto, sêmen e pólen — multiplicando e contrapondo gente e opressão. Quero a visão destoldada. Sem montanhas blindando o céu. Sem linhas separando gente e gente. Sem tanto ou nada.
No chão de terra, meus pés impressentidos. Corpo de folha bailarina. De bicho que não faz barulho. O caos se desconverte. O olho vermelho chora.
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