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domingo, 18 de setembro de 2016

Estripulias







O falatório se instaurou qual fagulha na festa que começava. É o Campeão, olha só, o Campeão chegou, é ele sim! Mas não, que claro que não, não é possível isso. É sim, olha lá a mãe da Renata levando ele pro banheiro, ele vai aparecer vestido como ele é, você vai ver como é ele. Não é, não!
Marcela não podia acreditar. Era muito estranho aquilo que via, não dava pra saber se era mesmo ele, se não era. Só se ela... Antes mesmo de terminar de pensar, já estava correndo na direção do moço que chegava cheio de sacolas e malas, largando as amigas que ainda chamaram seu nome aos gritos. O disparo foi tanto que, desabituada com os sapatos novos, de sola um tanto escorregadia, não conseguiu frear a tempo, trombando com as coxas do possível Campeão e de imediato falando um:
— Desculpa - A voz ainda mais fininha do que era sempre a sua.
Sentiu medo. Ele podia ter ficado bravo e isso seria assustador. E não só ele, mas a dona Salete, mãe da Renata. Talvez fosse melhor voltar correndo e fingir que não tinha ido atrás dele. Vai ver era tudo história da Isabel e todas estavam acreditando, ele devia ser tio da Renata, primo, alguma coisa assim. E já estava começando a se virar quando uma mão grandona travou-lhe o pulso esquerdo:
— Você queria falar comigo, mocinha? - Uma voz forte, grossa. Suave.
Ele se abaixou e agora Marcela podia ver bem de perto seus olhos pretos, tão bonitos. Mas ainda não dava pra saber se era ele mesmo, teria que perguntar:
 É que eu queria saber se você é o Campeão - falou, olhando pro chão.
— E o que você acha? - O sorriso dele de ponta a ponta, os lábios tão finos, ela conseguia olhar de novo pra cima e vê-lo, lábios que pareciam uma coisa macia de morder, cor-de-rosa bem clarinho.
— Não sei, minhas amigas estavam dizendo que era mas eu não sei.
— Qual é o seu nome? 
— Marcela - respondeu baixinho, a coragem cada vez menor.
— Olha, Marcela, eu sou e não sou. Sou porque quando troco a roupa e faço a maquiagem, ponho a peruca e fico todo colorido, eu viro o palhaço Campeão. Mas quando estou assim, como você está me vendo agora, eu sou o Diego, que vai no banco, anda de ônibus, de metrô, vai no mercado, essas coisas. Mas mesmo quando eu sou o Diego, sempre tem algo do Campeão comigo, entende?
Marcela não sabia se tinha entendido, mas estava tão encantada de estar assim pertinho dele, vendo o moreno daquela pele macia, o contorno daquele nariz, que foi falando:
 Sim, sim.
Mas seus olhinhos deviam estar diferentes do que o que a boca dizia, porque ele falou logo: 
— Acho que não, não é? Mas tudo bem, agora vem aqui pra eu te dar um abraço que eu tenho que me trocar, já vai começar o espetáculo, sua amiga Renata está fazendo aniversário e eu vou fazer vocês todos darem bastante risada, tá bem?
Marcela então passou um bracinho de cada lado do pescoço dele, bem forte, aproveitando ele estar agachado e se jogando sentada sobre uma daquelas pernas grandalhonas. A calça bege era macia sob a saia vermelha e branca que ela usava, a camisa azul, o botão de cima aberto, dava pra ver os pelos do peito bem pretos, e ela brincou um pouco com eles, trançando-os nos dedinhos da mão e dando risadinhas. Queria falar que o amava, mas cadê coragem? Então resolveu dar um beijo na bochecha dele, sentindo o áspero da pele daquele rosto, os pontinhos da barba despontando. Ele riu e deu um beijo no rosto dela dizendo:
— Princesa, princesa, tenho que ir, linda princesa.
A apresentação dele para a criançada foi boa, deu pra ela ter certeza de que era mesmo o Campeão que ela conhecia da tevê. Ele fez um montão de palhaçadas e ainda cantou umas músicas acompanhado do violão, fazendo todo mundo cantar junto. Mas não valeu nem um pouquinho do que teve antes.
E agora, indo pra casa da avó, no carro, o tique-taque do relógio do pai era o único som que se ouvia. Ele tragava o cigarro e soltava a fumaça sem pressa, enquanto a mãe permanecia de cabeça baixa, concentrada em alguma prega do tecido da saia.
Marcela tinha cinco anos naquele dia, e se concentrou em apenas olhar pela janela traseira os faróis amarelos dos carros que vinham atrás, com suas luzes de sonho e amor.

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