Era mal acordava.
Era mal punha os pés no
chão.
Era ainda sem ter comido
fosse o que fosse, sem ter sequer bebido o copo de água a que se habituara
fazia largos anos.
Ligava o número dela.
Comprazia-se em sentir o
liso das teclas ao marcar cada algarismo, e balbuciava-lhes o nome: dois, um,
seis, até ouvir o soar característico de estar chamando, e ficava a imaginar
como seria do lado de lá da linha: um ressoar estridente na casa onde ela
morava, do outro lado do oceano.
E, entretanto, ia acordando.
Ia-se trazendo do limbo onde se aninhava a seguir a deixar o lugar dos sonhos
onde, desde há mais de dois anos, permanecia um máximo de cinco horas seguidas.
Dorme pouco, dissera-lhe a
médica numa visita de rotina.
Em cada manhã, desde aquele fim
de Outubro, marcava o número que ela tinha escrito na contracapa do caderno em
que desenhava uns troncos de árvore nos jardins duma qualquer cidade algures na
Europa.
Ela perguntara-lhe,
aproximando-se por detrás: depois pinta-as ou deixa ficar apenas a grafite?
Agradara-se daquela
sonoridade, daquele melado que era a voz dessa desconhecida e, só depois de lhe
ter respondido com um: às vezes, se virou e lhe viu os olhos cor das cearas em
Agosto.
Quando ela atendia, e seriam
desoras do lado de lá da linha telefónica, costurava uma desculpa: ou que nem
reparara no relógio, ou que desesperava em falar-lhe e nem atendera aos fusos.
Era assim todos os dias e ligava sempre em cada início de dia, e do lado de lá,
ela nunca lhe disse: ora, isto lá são horas, estava dormindo! Do lado de lá,
ela abria um bom dia cantado de quem acordou com o sol nascendo e já labutou
fosse no que fosse. E em cada manhã dos muitos dias depois que se encontraram
num jardim duma localidade que, nem um nem outro, saberia assinalar num mapa,
ou, pelo nome que esqueceram, e nem buscar num Google que, ao tempo deles,
ainda nem existia; em cada manhã, do lado de lá da linha, ela respondia, fazia
exclamações, ripostava, dizia de sua justiça, ria e chorava por via de cada uma
das perguntas que eram colocadas do lado de cá, e a que ela respondia, e também,
às continuações que vinham do dia de antes de ontem, perguntas que eram
emanadas do lado de cá num emaranhado subtil, redondo ou estirado. Bocados de
dizeres que nem eram conversa, mas tantas vezes monólogos, questões angulosas a
semelharem mais afirmações do que dúvidas que não se deslindavam de um dia ao
outro e ficavam, quase sempre, dependuradas nas más interpretações ou nas
ignorâncias que desvendavam nela.
Questões triviais ou debates
filosóficos sobre os deuses, os arcanjos ou a justeza de uma criança aprender
em casa o abecedário, os números e as quatro operações, em perfeita conjugação
com a moral do lar em que cada progenitor, que tinha assim decidido, rejeitava
sequer a ideia de que um filho seu tivesse ouvido falar em meninos que nunca
rezavam antes de irem dormir, e meninos que não comiam. Meninos com fome: que horror, diziam eles.
E a ela que lhe parecia,
perguntava-lhe.
Ao telefone, com um oceano
de água a separá-los.
E, do lado de lá, ela
respondia como se a pergunta fosse aquele conjunto de palavras que lhe chegavam
ao ouvido e, ainda depois de se ter passado um verão inteiro e terem decorrido dois
invernos, ela escutava o lado de cá que, insistente, retorquia: mas porquê?
explicas-me? e ela sibilava frases entrecortadas de “acho que” e “não sei bem”
e do lado de cá partiam discursos enviados pelo telefone, de pé junto à porta
de entrada, que nunca colocara um telefone sem fio e nem um fio comprido com
que pudesse, se não deambular pela casa, ao menos sentar-se, confortável, num
sofá.
De pé era como fazia aqueles
telefonemas.
Sentou-se no soalho encerado
apenas naquele dia e nem sabia que na véspera tinha sido o telefonema derradeiro.
Foi no dia em que percebeu.
Estava a discar o algarismo das
unidades do número que faria com que ouvisse, a vir lá do outro lado, um bom
dia risonho e expectante, quando tudo se lhe tornou claro, e teve necessidade
de encaixar o corpo num ângulo muito recto entre o chão e a parede
Já lhe tinha acontecido
aperceber-se, mas de modo suave.
Um dia, tinha adormecido até
tarde e o telefone soara deste lado. Era ela a ligar-lhe, era ela falando,
ansiosa, ofegante: estou preocupada, e acrescentado: porque não telefonaste, com
uma intensa exclamação crítica a mesclar a interrogação.
Foi uma vez apenas.
Do lado de cá tinha-lhe dito,
com secura na voz, que um dia podia mesmo nunca mais telefonar.
Que nunca lhe telefonasse,
disse-lhe, cortante.
Disse, assim, indiferente ao
desejo que ela nem disfarçara de lhe mostrar que se tinha já habituado, que
dependia daquele ruido e da sua voz do outro lado.
Já aí se tinha apercebido.
Depois, soube.
Naquele dia de escorregar até
sentir o soalho a receber-lhe o corpo, soube que se comprazia em devorar-lhe o
entendimento, comer-lhe, como pequeno-almoço, cada pedacinho do que ela era no
seu mais precioso: alma, espírito, intelecto, sensibilidade.
Já tinha tido um vislumbre,
mas nunca como no dia em que precisou sentar-se.
Nesse dia de ela nem ter
atendido o telefone, percebeu com aquela nitidez que é a visão que só conseguem
os olhos que temos e não se baseiam num vítreo, num cristalino e numa córnea,
humores vários e o nervo óptico.
Viu de ver em todos os
pormenores, e por trás e pela frente, ao mesmo tempo.
Viu para lá do que nunca
imaginara e escorregou pela parede, e sentou-se no soalho encerado com um
sorriso estampado na cara e um arrepio de espanto a percorrer-lhe o corpo.
Era assim como se fosse
temor, mas era um contentamento, aquele estar ali descobrindo que era do demo
que aquilo lhe vinha em cada manhã a falar com ela.
Do demo, muito mais do que dos
deuses em que nunca acreditara.
Era dia cinco de um Janeiro gelado
e marcava o número e ouvia o ruido característico do telefone a chamar lá do
outro lado.
Nesse dia, soou mais vezes
do que era costume.
Nessa manhã ninguém
respondeu do outro lado, nem mesmo depois de ter colocado o fone no descanso e
ter repetido cada gesto a clicar cada tecla sem o ritual que lhe era costume.
Ficou à espera que o ruido
se calasse e fosse substituído pela voz dela num bom dia de quem acordou há
muito.
Mas, nessa manhã, ela não
veio.
E foi esse o dia em que
percebeu, e se sentou no soalho, ainda antes de saber que ela nem atenderia.
Foi uns instantes antes de
saber que ela não atenderia o telefone.
Estava já com a parede a
servir de apoio a um corpo que mal carregava o pasmo. Estava já deglutindo
aquele ter percebido que, a existir-se como ser de outro mundo, seria como emanação
de um demónio e não de um deus, que só um demónio se daria ao trabalho de
colocar um telefone em meio da vítima e do algoz, a fazer parecer, a um e ao outro,
que era uma conversa, uma troca de ideias, um cimentar da amizade que podia ter
ficado do encontro casual entre dois seres que viviam com um oceano a
separá-los.
Percebeu que tinha sido, dia
a seguir a outro dia, aquele devorar-lhe alma e o mais que houvesse nela para
além do corpo.
Saboreando, sugando, trincando
como um naco suculento, ou arrancando pedaços como se fossem entranhas de animal
de talho, ou humano morto na mesa de autopsias.
Percebeu, e nem um choro,
uma lágrima com que se condoesse, antes lhe ficou, plasmado no rosto, aquele
sorriso.
Mais tarde deste dia ter
sido, haviam de dizer-lhe.
Seria muito depois de ter descoberto
que lhe sugara a alma um verão completo e dois largos invernos.
Muito depois de ela não ter atendido
o telefone.
Tentou, de novo. Marcou cada
algarismo como já nem lhe era costume.
Perguntou pela Rebeca que
nem lhe sabia outro nome: Rebeca quê, tinha-lhe um dia perguntado, e ela tinha debitado
dois sobrenomes. Tinha-os esquecido.
Alguém atendeu do outro
lado.
Sou um amigo, disse.
E, de repente, lembrou-se do
nome da cidadezinha onde se tinham encontrado: Mauléon, uma quase vilória
perdida nas faldas dos Pirenéus Atlânticos. Mas nem disse: encontrámo-nos em
França, nem disse o nome da cidade. Do lado de lá, a voz falava, como se fosse
natural ir dizendo a alguém que ligava deste lado, e ainda hoje não sabe quem
lhe falou dela. Se pai, irmão, marido, amigo ou cunhado; ou se seria um tio ou
o padrasto ou um advogado. Era voz de homem, mas só isso soube.
A voz informou: que tinha
sido lento e penoso; que ela tinha passado nisso um verão e dois invernos.
1 comentários:
Fico à espera do próximo que este já o devorei e assimilei. Obrigado. Réjo Marpa
Postar um comentário