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sexta-feira, 15 de julho de 2016

do lado de lá




Era mal acordava.
Era mal punha os pés no chão.
Era ainda sem ter comido fosse o que fosse, sem ter sequer bebido o copo de água a que se habituara fazia largos anos.
Ligava o número dela.
Comprazia-se em sentir o liso das teclas ao marcar cada algarismo, e balbuciava-lhes o nome: dois, um, seis, até ouvir o soar característico de estar chamando, e ficava a imaginar como seria do lado de lá da linha: um ressoar estridente na casa onde ela morava, do outro lado do oceano.
E, entretanto, ia acordando. Ia-se trazendo do limbo onde se aninhava a seguir a deixar o lugar dos sonhos onde, desde há mais de dois anos, permanecia um máximo de cinco horas seguidas.
Dorme pouco, dissera-lhe a médica numa visita de rotina.
Em cada manhã, desde aquele fim de Outubro, marcava o número que ela tinha escrito na contracapa do caderno em que desenhava uns troncos de árvore nos jardins duma qualquer cidade algures na Europa.
Ela perguntara-lhe, aproximando-se por detrás: depois pinta-as ou deixa ficar apenas a grafite?
Agradara-se daquela sonoridade, daquele melado que era a voz dessa desconhecida e, só depois de lhe ter respondido com um: às vezes, se virou e lhe viu os olhos cor das cearas em Agosto.
Quando ela atendia, e seriam desoras do lado de lá da linha telefónica, costurava uma desculpa: ou que nem reparara no relógio, ou que desesperava em falar-lhe e nem atendera aos fusos. Era assim todos os dias e ligava sempre em cada início de dia, e do lado de lá, ela nunca lhe disse: ora, isto lá são horas, estava dormindo! Do lado de lá, ela abria um bom dia cantado de quem acordou com o sol nascendo e já labutou fosse no que fosse. E em cada manhã dos muitos dias depois que se encontraram num jardim duma localidade que, nem um nem outro, saberia assinalar num mapa, ou, pelo nome que esqueceram, e nem buscar num Google que, ao tempo deles, ainda nem existia; em cada manhã, do lado de lá da linha, ela respondia, fazia exclamações, ripostava, dizia de sua justiça, ria e chorava por via de cada uma das perguntas que eram colocadas do lado de cá, e a que ela respondia, e também, às continuações que vinham do dia de antes de ontem, perguntas que eram emanadas do lado de cá num emaranhado subtil, redondo ou estirado. Bocados de dizeres que nem eram conversa, mas tantas vezes monólogos, questões angulosas a semelharem mais afirmações do que dúvidas que não se deslindavam de um dia ao outro e ficavam, quase sempre, dependuradas nas más interpretações ou nas ignorâncias que desvendavam nela.
Questões triviais ou debates filosóficos sobre os deuses, os arcanjos ou a justeza de uma criança aprender em casa o abecedário, os números e as quatro operações, em perfeita conjugação com a moral do lar em que cada progenitor, que tinha assim decidido, rejeitava sequer a ideia de que um filho seu tivesse ouvido falar em meninos que nunca rezavam antes de irem dormir, e meninos que não comiam. Meninos com fome: que horror, diziam eles.
E a ela que lhe parecia, perguntava-lhe.
Ao telefone, com um oceano de água a separá-los.
E, do lado de lá, ela respondia como se a pergunta fosse aquele conjunto de palavras que lhe chegavam ao ouvido e, ainda depois de se ter passado um verão inteiro e terem decorrido dois invernos, ela escutava o lado de cá que, insistente, retorquia: mas porquê? explicas-me? e ela sibilava frases entrecortadas de “acho que” e “não sei bem” e do lado de cá partiam discursos enviados pelo telefone, de pé junto à porta de entrada, que nunca colocara um telefone sem fio e nem um fio comprido com que pudesse, se não deambular pela casa, ao menos sentar-se, confortável, num sofá.
De pé era como fazia aqueles telefonemas.
Sentou-se no soalho encerado apenas naquele dia e nem sabia que na véspera tinha sido o telefonema derradeiro.
Foi no dia em que percebeu.
Estava a discar o algarismo das unidades do número que faria com que ouvisse, a vir lá do outro lado, um bom dia risonho e expectante, quando tudo se lhe tornou claro, e teve necessidade de encaixar o corpo num ângulo muito recto entre o chão e a parede
Já lhe tinha acontecido aperceber-se, mas de modo suave.
Um dia, tinha adormecido até tarde e o telefone soara deste lado. Era ela a ligar-lhe, era ela falando, ansiosa, ofegante: estou preocupada, e acrescentado: porque não telefonaste, com uma intensa exclamação crítica a mesclar a interrogação.
Foi uma vez apenas.
Do lado de cá tinha-lhe dito, com secura na voz, que um dia podia mesmo nunca mais telefonar.
Que nunca lhe telefonasse, disse-lhe, cortante.
Disse, assim, indiferente ao desejo que ela nem disfarçara de lhe mostrar que se tinha já habituado, que dependia daquele ruido e da sua voz do outro lado.
Já aí se tinha apercebido.
Depois, soube.
Naquele dia de escorregar até sentir o soalho a receber-lhe o corpo, soube que se comprazia em devorar-lhe o entendimento, comer-lhe, como pequeno-almoço, cada pedacinho do que ela era no seu mais precioso: alma, espírito, intelecto, sensibilidade.
Já tinha tido um vislumbre, mas nunca como no dia em que precisou sentar-se.
Nesse dia de ela nem ter atendido o telefone, percebeu com aquela nitidez que é a visão que só conseguem os olhos que temos e não se baseiam num vítreo, num cristalino e numa córnea, humores vários e o nervo óptico.
Viu de ver em todos os pormenores, e por trás e pela frente, ao mesmo tempo.
Viu para lá do que nunca imaginara e escorregou pela parede, e sentou-se no soalho encerado com um sorriso estampado na cara e um arrepio de espanto a percorrer-lhe o corpo.
Era assim como se fosse temor, mas era um contentamento, aquele estar ali descobrindo que era do demo que aquilo lhe vinha em cada manhã a falar com ela.
Do demo, muito mais do que dos deuses em que nunca acreditara.
Era dia cinco de um Janeiro gelado e marcava o número e ouvia o ruido característico do telefone a chamar lá do outro lado.
Nesse dia, soou mais vezes do que era costume.
Nessa manhã ninguém respondeu do outro lado, nem mesmo depois de ter colocado o fone no descanso e ter repetido cada gesto a clicar cada tecla sem o ritual que lhe era costume.
Ficou à espera que o ruido se calasse e fosse substituído pela voz dela num bom dia de quem acordou há muito.
Mas, nessa manhã, ela não veio.
E foi esse o dia em que percebeu, e se sentou no soalho, ainda antes de saber que ela nem atenderia.
Foi uns instantes antes de saber que ela não atenderia o telefone.
Estava já com a parede a servir de apoio a um corpo que mal carregava o pasmo. Estava já deglutindo aquele ter percebido que, a existir-se como ser de outro mundo, seria como emanação de um demónio e não de um deus, que só um demónio se daria ao trabalho de colocar um telefone em meio da vítima e do algoz, a fazer parecer, a um e ao outro, que era uma conversa, uma troca de ideias, um cimentar da amizade que podia ter ficado do encontro casual entre dois seres que viviam com um oceano a separá-los.
Percebeu que tinha sido, dia a seguir a outro dia, aquele devorar-lhe alma e o mais que houvesse nela para além do corpo.
Saboreando, sugando, trincando como um naco suculento, ou arrancando pedaços como se fossem entranhas de animal de talho, ou humano morto na mesa de autopsias.
Percebeu, e nem um choro, uma lágrima com que se condoesse, antes lhe ficou, plasmado no rosto, aquele sorriso.
Mais tarde deste dia ter sido, haviam de dizer-lhe.
Seria muito depois de ter descoberto que lhe sugara a alma um verão completo e dois largos invernos.
Muito depois de ela não ter atendido o telefone.
Tentou, de novo. Marcou cada algarismo como já nem lhe era costume.
Perguntou pela Rebeca que nem lhe sabia outro nome: Rebeca quê, tinha-lhe um dia perguntado, e ela tinha debitado dois sobrenomes. Tinha-os esquecido.
Alguém atendeu do outro lado.
Sou um amigo, disse.
E, de repente, lembrou-se do nome da cidadezinha onde se tinham encontrado: Mauléon, uma quase vilória perdida nas faldas dos Pirenéus Atlânticos. Mas nem disse: encontrámo-nos em França, nem disse o nome da cidade. Do lado de lá, a voz falava, como se fosse natural ir dizendo a alguém que ligava deste lado, e ainda hoje não sabe quem lhe falou dela. Se pai, irmão, marido, amigo ou cunhado; ou se seria um tio ou o padrasto ou um advogado. Era voz de homem, mas só isso soube.
A voz informou: que tinha sido lento e penoso; que ela tinha passado nisso um verão e dois invernos.


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