("Le Mont Sainte-Victoire", Cézanne)
Lígia
tinha vinte anos e uma vontade imensa de mudar o mundo. Tinha lido há pouco Reflexos do baile, do Callado, e sonhava
ser como Amália, Dirceu, Vítor, Juliana. Guerrilheira. Queria botar pra
quebrar, sair por aí atirando e matando, mudar, transformar pra valer. Verdade
que sentia certo incômodo e mesmo um pouco de medo com a ideia de tirar a vida
de alguém. Mas com o tempo, certeza que passaria tudo e ficaria craque.
Tinha
acabado de falar do livro para Tomás e procurava se concentrar que era isso o
que havia ocorrido. Acima de tudo uma conversa normal, todo o resto era apenas o
azarssorte de terem se cruzado no exato momento em que a luz apagou e a
universidade ficou às escuras. Depois descobriram que não era só lá, era a
cidade, o estado, praticamente o país todo, e a ideia de uma nação no escuro
era uma delícia, podia ter algum grupo por trás disso, de repente iam sabotar
vários órgãos governamentais, ou estariam inclusive sequestrando o governador,
o presidente, vai saber.
Era
bom descobrir essas coisas junto com Tomás, fumando ao lado dele e dando goles
na cachacinha de bolso que parecia sempre lhe fazer companhia. João talvez
encrencasse o bafo, mas isso era o de menos, nada de pensar agora, beber com
Tomás era divertido. Lígia se pôs a falar da revolução do livro, os
guerrilheiros retomando um plano que era dos republicanos que iam derrubar o
Império: inundar a cidade e deixá-la às escuras durante o baile da Ilha Fiscal
que, no tempo dos guerrilheiros, seria uma festa dos embaixadores. Tomás ouvia
com atenção, mas logo colocou os limites dizendo que em nosso país, Lígia, hoje,
só se fosse o crime organizado, a revolução é apenas um sonho de uma minoria
muito minoria mesmo. É certo que disso sabiam os dois, mas gostavam de sonhar e
ela se maravilhava em contar pra ele mais coisas dos planos dos guerrilheiros
do romance. Ah, a raiva que sentia de toda a exuberância, os gastos inúteis, o
absurdo que persistia ante a miséria que, ainda, e quantos anos passados,
castigava o país.
Eleição
em centro acadêmico não mudava nada, nem voto mudava. Tinha que se começar tudo
de novo e os guerrilheiros dos anos 60 e 70 ao menos tentaram, com amor, alma, vida,
ela dizia. Gostava daquela coisa grandiosa: uma cidade às escuras, em meio ao
fausto absurdo da pompa, os guerrilheiros agindo na surdina e sequestrando os
diplomatas em seu baile de vaidades, botando em xeque toda a estrutura podre.
Tomás
passava-lhe a garrafa e era bom beber o líquido dourado e ordinário. Enquanto
falava e o ouvia expressar a necessidade de, sem brincadeira, pensarem mesmo em
fazer algo grande aqui, na universidade, temos que fazer e em breve, Lígia
tinha um beijo das mãos entre eles. Tomás também tinha. Ele tinha Paula, longe.
Lígia tinha João, não tão longe assim.
Conversavam
num daqueles montes que ainda hoje existem espalhados na praça que só serve
como corta-caminho, tão inóspita que é. Ela tinha saído um pouco antes do
término da aula, ainda com luz no campus, e o encontrou atravessando a praça em
sentido contrário. Não ficou sabendo onde ia, no fim. Logo ao se encontrarem a
luz apagou e, com o rádio de pilha que Tomás levava pra todo lado, em pouco
descobriram que era até o Paraguai que estava sem luz. A suspeita era alguma
falha na estação de Bauru.
Nada
de grupo revolucionário, apesar do desejo tanto. Mas já empolgava, rompia a
rotina que existe mesmo em uma moradia estudantil. Ficariam acordados até ver a
luz voltar. E dessa vez não era uma reprimenda ridícula da reitoria às manifestações
dos alunos, como no dia em que saíram em passeata pelo campus e, a cada lugar a
que chegavam, a luz era cortada.
Não,
era algo bem maior, embora fosse apenas um acidente. Mas um blecaute parece
sempre trazer a noção de que tudo pode ser revirado, a ordem é quebrada,
rompida, e coisas pequenas, como furtos, podem acontecer.
Procurava
pensar nisso para explicar o que sentia diante de Tomás e para fugir das coxas
já quentes e da vontade de se lançar. Era só euforia da escuridão derrubando os
limites, as censuras. A natureza animal de todos, claro, era só mais um chavão
inocente, mas eles eram humanos e saberiam suplantar tudo com a racionalidade
que tem de ser. João lhe esperava, ainda que ela não quisesse mais. Tomás era
amigo de João, e ainda havia Paula nessa história, que gostava de Lígia. A
equação nitidamente dava o resultado límpido: negativo.
Mas
o beijo das mãos, há pouco mais de uma semana, tão inopinado quanto prazeroso, tinha
acendido o desejo e feito ver o que ela não imaginava. Sim, Lígia podia ser
desejada. Sim, não estava condenada a João. Sim, era uma mulher.
Tomás
era bonito demais em seus cabelos curtinhos e encaracolados, pretos bem
pretinhos, os lábios grossos, os olhos úmidos de euforia. O toque das suas mãos,
naquele dia, antes, tinha assustado Lígia, o medo tanto que fugiu. Recolheu o
material do trabalho que escrevia na mesa da cozinha coletiva e voltou ao
apartamento, suportando que João desovasse nela sua baba indesejada.
Agora
Tomás falava de ações possíveis, Lígia voltava ao baile das águas dos
guerrilheiros que inundariam o Rio de Janeiro e se inundava.
Quando
ele pegou, com as suas duas largas mãos, a mão direita dela, Lígia não fugiu. Irrompeu,
com lábios e língua, na boca dele, até se jogarem nos pedregulhos, o radinho
repetindo notícias sobre o apagão e Tomás fecundando as águas de Lígia.
Depois,
ao subir as escadas repletas de gente do seu bloco da moradia, foi trombando
com vários rostos conhecidos, cumprimentando-os. As pessoas pareciam extasiadas
pela falta de luz. Falavam alto, riam, bebiam e pareciam sentir que nunca mais
nada voltaria ao normal, era uma grande transformação se iniciando.
Ainda
que um tanto distante delas, Lígia irmanava-se. Era certo que aquele apagão
tinha iniciado algo novo.
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