O que me trouxe aqui é uma
história pra lá de inusitada, seu Júlio. Caso o senhor disponha de tempo,
gostaria de narrar os acontecimentos nos mínimos detalhes para lhe inteirar de
todas as circunstâncias. Espero que ao final da minha narrativa você,
desculpe-me, o senhor tenha dados suficientes para poder nos ajudar,
livrando-nos deste pesadelo. É difícil iniciar o relato desta estranha, e
porque não dizer, desagradável experiência, mas é melhor deixar os rodeios de
lado e ir direto ao assunto.
Eu nunca imaginei uma mãe sendo capaz de vingar-se dos seus filhos.
Sempre acreditei piamente na impossibilidade de sentimentos vis por parte de
alguém capacitada a produzir vida. Deus é criador e é amor. As mães também
criam, geram vida e são amorosas. Então, como explicar a atitude de mamãe para
conosco, seu Júlio?
Tudo bem, estou calmo,
fique tranquilo. Bom, somos em três irmãos, todos gravitando na faixa dos
quarenta anos. Como já lhe disse, me chamo Alexandre e sou o caçula. Temporão
por acidente e solteiro pela ausência de paixão, acredite. E sendo o único livre de responsabilidades
familiares coube a mim a missão de cuidar de mamãe quando ela enviuvou. Tão
logo papai desceu à sepultura após o aneurisma, desmontei meio a contragosto o
meu apartamento e fui viver com ela na ampla casa de subúrbio que meu pai
erguera “tijolo por tijolo” como ele orgulhosamente dizia. O senhor fuma, seu
Júlio? Ah, não posso fumar aqui? Sem problemas. Como e ia dizendo, sou o único
solteiro e o senhor há de convir que para um homem acostumado a independência
de morar sozinho, foi um tanto sacrificante esta mudança de hábitos, mas alguém
tinha que renunciar parte de sua vida
para o conforto de mamãe que vivia há quase cinco anos em uma cadeira de rodas
desde que uma poderosa artrose lhe assaltara os movimentos das pernas. Alberto,
meu irmão do meio, mora com mulher e filhos em outra cidade e Acácia,
primogênita e oito anos mais velha do que eu, tem sua própria família composta
de marido e filhas problemáticas para
zelar.
Assim, mamãe ficou entregue aos meus cuidados. Eu procurava facilitar-lhe
a vida, administrando o pequeno patrimônio que papai nos legara sem, contudo,
deixar de viver a minha existência com certa autonomia. Isto significava
dedicação ao meu trabalho como cronista de um jornal popularesco no horário
comercial e eventuais casos amorosos tão logo a noite se desfraldava. Não me
leve à mão, mas não vejo porque mentir para o senhor. Sou mulherengo mesmo,
desculpe a franqueza. E por estas e outras, mamãe passava a maior parte do dia
sob responsabilidade da Marta, uma simpática e robusta enfermeira por mim
contratada. Ela parecia entender minha condição de homem e de profissional e,
resignada, aproveitava minha parca companhia quando o meu tempo livre se
dilatava.
Meus irmãos pouco apareciam para visitá-la. Alberto ligava semanalmente,
mas demorava poucos minutos no telefone com ela, como se uma obrigação
cumprisse. Acácia fazia aparições relâmpagos na casa do subúrbio e
invariavelmente saia munida de um empréstimo cujo pagamento minha mãe raramente
via concretizar-se. E assim a gente ia tocando a vida.
A primeira vez que eu percebi em mamãe certa mágoa com o nosso descaso
foi cerca de três dias após a noite de autógrafos do meu primeiro livro. Sim,
sou escritor. Não falei que escrevo crônicas para um jornal? Ah, o senhor mão
me conhecia. Bem, vê-se então que eu sou bem menos popular do que imaginava,
mas isto não vem ao caso agora. Toda a família estava presente na livraria onde
seria a noite de autógrafos. Meu irmão despencou lá de Minas trazendo de
contrapeso a mulher e os meninos. Acácia, que detesta livros, mas adora uma
festa, não deixou de comparecer e mamãe ficou aos seus cuidados, sendo
assessorada pelas minhas sobrinhas já adolescentes.
O senhor deve imaginar que eu era o centro das atenções naquela noite e
isto me manteve todo o tempo ocupado, autografando o livro, atendendo à
imprensa, forçando sorrisos e outras pequenas atitudes necessárias para o
sucesso do evento. Lembro de haver tirado fotos com boa parte da parentada.
Tinha certeza que mamãe estava em uma destas benditas fotos e qual foi a minha
surpresa quando ao pegar loja os negativos revelados não encontrei nenhuma foto
com a mamãe. Estavam todos lá, seu Júlio, divididos em várias imagens,
sorridentes, segurando meu livro, abraçados a mim, mas faltava mamãe. Vendo as
fotos, mamãe demonstrou uma surda mágoa com o incidente. Na mesma hora liguei
para a Joyce, minha sobrinha mais velha e dona da câmera fotográfica,
perguntando o que havia acontecido. Ela
disse ter certeza que havia clicado a mim e mamãe juntos e que talvez a máquina
tivesse travado ou o filme houvesse chegado ao sem fim, ela não sabia ao certo.
Moral da história, seu Júlio: ninguém assumiu a culpa pelo constrangedor
episódio.
E o senhor nem imagina o que aconteceu depois. Isso mesmo! O ocorrido
repetiu-se! Desta vez, nos 15 anos de Leonora, a outra filha de minha irmã.
Fotos reveladas, mamãe ausente. Puro esquecimento e desconsideração. Minha
também, o senhor está coberto de razão. Só que desta vez mamãe soltou o verbo:
“esqueceram que eu pertenço a esta família, ou então vocês têm vergonha da
aleijada aqui” – ela repetiu esta frase por meses, seu Júlio. Eu até a decorei
de tanto que a ouvi.
A partir de então, em todas as ocasiões festivas, tomávamos as devidas
precauções para retratarmos mamãe, mas, observando recentemente algumas
fotografias daquela época, percebi em seu semblante a tristeza como que nos
demonstrado que aquele nosso gesto em verdade consistia em nos livramos de uma
eventual culpa de pisarmos na bola do que sincera consideração para com ela.
Viveu mais cinco anos, seu Júlio, e morreu como um passarinho. Estávamos
nós dois na sala de casa, numa daquelas noites que me faltava uma companhia
feminina, conversando banalidades quando o telefone que ficava em meu quarto
tocou. Foi o tempo entre ir atender a chamada, constatar o engano e retornar à
sala. Encontrei mamãe morta. A gente soube pelo Doutor Peçanha, cardiologista
dela há muitos anos, que ela foi vitimada por um ataque fulminante. Ele me
garantiu que nem dor mamãe há de ter sentido. Mas foi muito triste, ver o corpo
dela ali, jogado sem vida naquela cadeira de rodas, cabecinha branca pendendo
de lado como se dormisse. Lembro como se fosse hoje, parece que eu estou vendo
a cena. Eu sentei-me ao lado da cadeira, acariciei seus cabelos ralinhos e,
derramando lágrimas sentidas e sinceras, pedi desculpas por mim e pelos meus
irmãos pela falta de atenção nestes últimos anos, pelo nosso descaso. Apesar de
tudo, ainda tentei argumentar com o seu cadáver que as nossas ocupações e o
ritmo de vida que levávamos eram os verdadeiros culpados por nossa pouca
dedicação. Só depois eu liguei para a mana. Perdão pela voz embargada, seu
Júlio, mas o senhor entende, não?
Bom, agora, o motivo que me trouxe aqui. Mamãe se vingou de todos nós,
seu Júlio. É sério! E Alberto foi a primeira vítima. Calma, eu vou contar.
Alberto e Isabela são pais de dois meninos com menos de cinco anos e curtem
registrar o crescimento dos garotos através de fotos. Após uma das inúmeras
sessões fotográficas, no quintal de sua casa, Alberto percebeu um vulto
estranho em uma das fotografias, próximo ao muro, meio por detrás de um
arbusto. Intrigado, pois só ele, Isabela e os meninos encontravam-se em casa,
ampliou a foto e, assombrado, descobriu o rosto de mamãe! Sua expressão era de
uma perturbadora sisudez. Uma imagem vale mais do que mil palavras, o senhor já
deve ter ouvido esta frase, não é verdade, seu Júlio? Pois é. Mamãe decretara
toda a culpa de Alberto por sua desconsideração com ela, intrometendo-se em um
momento de lazer e felicidade de sua família.
Meu irmão enviou-me a foto pelo
computador e eu de início custei a acreditar. Briguei feio com ele, condenando
o que eu julgava ser uma brincadeira de mau gosto com a memória da mamãe, que
aquilo não se fazia, etc. Fique puto dentro das calças, seu Júlio. Desculpe,
desculpe, não vai se repetir. Fiquei injuriado com o meu irmão. Cheguei a
cortar relações com ele, embora Alberto afirmasse não se tratar de uma
montagem. Minha irmã também não
acreditou na história porém, semanas depois, mamãe deu o ar de sua graça em uma
fotografia de viagem que ela e o marido fizeram a Itatiaia. Era temporada de
inverno e uma neblina torrencial cobria o cenário fotografado e, por detrás dos
dois, via-se ao fundo uma silhueta a uns dez metros de distância que lembrava
mamãe, com os mesmos vestidinhos estampados que ela costumava trajar! Somente
uma silhueta era perceptível, mas eu tinha certeza que era ela!
E minhas certezas se confirmaram com a foto que eu tirei para renovar o
passaporte. Aqui está ela, veja o senhor mesmo! Nítida, sorrindo, atrás de mim.
Ao menos por mim ela teve piedade, não se apresentou aborrecida, a me censurar.
Aterrorizados, estamos há semanas sem tirar uma mísera foto, impedidos de
guardar nossas mais estimadas recordações. Meus sobrinhos correm riscos de
crescer sem os seus momentos registrados, tudo por culpa deste capricho da
mamãe. Sim, é espantoso, seu Júlio. Concordo com o senhor, mas, já que o senhor
é médium e tem linha direta com as almas do outro mundo, venho lhe pedir por
caridade. Numa próxima reunião espírita neste centro, evoque minha mãe. O nome
dela é Dora, Dona Dora, e peça a ela para deixar de aparecer em nossas fotos.
Já fui a parapsicólogos, exorcistas, pais-de-santo e só gastei dinheiro e ouvi
conversa fiada. Após consultar estes especialistas, batia uma chapa e lá estava
mamãe, onipresente, invadindo o papel fotográfico. O senhor é minha última
esperança. Vai nos ajudar, seu Júlio?
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